Oliva Creative Factory acolhe arte de mentes incontroláveis

Colecção de arte bruta de António Saint Silvestre e de Richard Treger, única na Península Ibérica, morará no núcleo de arte da Oliva Creative Factory. Dupla de coleccionadores apaixonou-se pelas obras de doentes mentais, alegados médiuns

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Adriano Miranda

A montagem da exposição começou há algumas semanas e o comissário Christian Berst, galerista francês e um dos maiores especialistas mundiais de arte bruta, chegará dentro de dias para definir os lugares das obras de arte da colecção Treger-Saint Silvestre, única na Península Ibérica. António Saint Silvestre, pintor e escultor de origem italiana e portuguesa nascido em Moçambique, e Richard Treger, pianista clássico de formação, judeu ashkenazi de origem lituana e irlandesa nascido no Zimbabué, tratam dos preparativos no núcleo de arte da Oliva Creative Factory, em São João da Madeira, morada das cerca de 800 peças reunidas ao longo de 40 anos. Durante duas décadas, Saint Silvestre e Treger tiveram uma galeria de arte em Paris - hoje dividem a sua residência entre Lisboa e a capital francesa.

Saint Silvestre faz as honras da casa. Ainda faltam os nomes dos artistas nas paredes e as explicações das obras que faz questão que acompanhem as peças da exposição que será inaugurada a 31 de Maio com cerca de 300 das 800 peças da colecção. No piso de cima, ficará a arte bruta. Os trabalhos ainda não estão instalados, mas já estão agrupados por autores. Quadros, desenhos, instalações, esculturas, obras de arte marginais, de doentes psiquiátricos, de médiuns, de loucos, de homens e mulheres invadidos por impulsos criativos e que transgridem sem intenção a arte estabelecida. Arte desconcertante, arte que perturba, que surpreende, que incomoda, que perfura. Por vezes, indigesta, como um soco no estômago. “É arte fora dos eixos, fora do caminho, detestada e ignorada pelos grandes galeristas”, avisa Saint Silvestre. “Como um diamante bruto que não é trabalhado”, acrescenta.

Arte que não obedece a um estilo e que nasce de mentes incontroláveis, mentes que não seguem regras, que não fazem o que lhe dizem. Arte que explode de estados de alma que tocam os extremos, de angústias, de dores. Como é o caso do russo Foma Jaremtshuk, que desenhou a violência dos choques eléctricos que sofreu na pele como se estivesse a ser mordido por peixes. Há vários quadros deste homem que nunca aprendeu a pintar, que foi vítima do regime de Estaline, processado por difamação contra a então União Soviética, enviado para um campo de trabalho e transferido para um hospital psiquiátrico, morrendo em 1986 num hospício para doentes mentais graves. O lápis foi o seu aliado para mostrar “o sofrimento causado pelos choques eléctricos”. Desenha homens cheios de dor, alguns corpos encolhidos, picados por afiadas espinhas de peixes, bocas que vomitam, cabeças que se desintegram.

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Adriano Miranda

Nesta colecção há também quadros do suíço Adolf Wölfli, considerado um dos grandes nomes da arte bruta e que não passou despercebido a muitos artistas do período surrealista. Há um desenho simétrico pintado a lápis de cor com personagens estranhas sem expressão e uma espécie de pauta musical. Wölfli tem uma infância traumática: um pai que troca a família pelo álcool, separado da mãe cedo demais, várias experiências em famílias de acolhimento, é preso por tentativas de violação, reincide e é internado numa clínica psiquiátrica onde usa a arte para criar um complexo universo só seu em milhares de páginas. Fechado na sua esquizofrenia, cria o seu mundo, as suas cidades, desenha a sua organização social. Morre de cancro do estômago em 1930. É o psiquiatra que o acompanha que se interessa pelas obras que fascinaram André Breton. “Há aqui, na arte bruta, uma liberdade total, não há tentativas de agradar a ninguém. Arte que não é polida, que não é trabalhada, que é natural”, sublinha Saint Silvestre, que se habituou a procurar arte bruta em várias partes do mundo.

O comissário Berst já disse que descobrir, coleccionar e preservar a arte bruta será provavelmente a última aventura da arte do século XXI. A dupla Saint Silvestre e Treger move-se precisamente nesse território.

Há mais quadros de mentes torturadas. Os quadros do norte-americano Henry Darger retratam torturas com exércitos de homens que crucifixam meninos vestidos de meninas. “Foi colocado num orfanato aos sete anos e retrata esta batalha monstruosa, de abusos”, diz Saint Silvestre chamando a atenção para essa obra com pinceladas de guache. Darger pintou na frente e no verso crianças que fogem de adultos vestidos de generais. “Os hospitais psiquiátricos têm agora ateliers para os doentes não se aborrecerem, mas nem tudo o que desenham é arte bruta”, comenta o coleccionador.

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