Um dia no Expresso do Oriente

O comboio que liga Ancara ao extremo Este da Turquia não tem a fama do seu homónimo. Guarda, no entanto, encantos de cortar a respiração

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Dado Ruvic/Reuters

Estava prometida em alguns sites como uma das mais espantosas viagens de comboio do mundo. O Dogu Express, que liga Ancara a Kars, atravessa canyons, rios sinuosos, planícies sem fim, prados de verdes impossíveis, aldeias onde a passagem diária do comboio ainda faz a criançada rumar ao apeadeiro e acenar, dando sobre si mesma voltas de excitação e entusiasmo.

A viagem, dantes, era mais completa. O comboio partia de Istambul, da lendária estação Haydarpasa, agora desativada. É natural que, assim que terminadas as obras de melhoria das linhas férreas, o percurso parta novamente da antiga Constantinopla. Então, os contrastes entre o início e o fim da viagem serão ainda maiores.

Actualmente, porém, quem quiser viajar neste Expresso do Oriente, que nada tem a ver com o de Agatha Christie, tem de apanhá-lo em Ancara, a estratégica capital. A Pegasus faz a ponte aérea Istambul-Ancara diariamente, com vários horários.

Ancara não é propriamente entusiasmante para um turista. É curioso subir a Avenida Ataturk, em Kizilay, observando as grandes embaixadas antes do Sheraton e depois descer pelas ruas interiores, onde o comércio ferve e os preços são consideravelmente mais baixos. As atrações da cidade incluem o Anitkabir, mausoléu de Ataturk, e a imensa mesquita Kocatepe, que parece antiga mas foi construída em plenos anos 80.

Na estação de Ancara, com o seu estilo art déco, espera-nos a grande razão de estarmos por ali: o Dogu Express, que nos levará até Erzurum, onde a Turquia quase não pode ser mais asiática.

Os comboios turcos são de uma qualidade surpreendente: por 30 euros viaja-se pelo país numa couchette privada, com direito a cama feita, chocolates, lavatório privado e vista panorâmica pela grande janela do compartimento que pode ser individual ou duplo.

O comboio leva tempo a sair de Ancara, dando uma percepção dos subúrbios da cidade, geralmente pequenos agrupamentos populacionais com miúdos a jogar à bola, uma mesquita, homens encostados a muros à espera de qualquer coisa… Sem nos apercebermos, entramos no centro da Turquia, sempre na imensa província da Anatólia, que, por oposição à Trácia, é a parte asiática do país.

Pelo caminho, as paisagens alteram a uma rapidez brutal: de uma vez, desfiladeiros que deixam os carris a escassos centímetros de grandes ravinas rumo a um rio agreste. Depois, quase de seguida, grandes planícies douradas, que dão, por sua vez, lugar a densas florestas. A partir de uma determinada altura, é sempre a subir e a noite cai já entre as montanhas.

Nem só do lado de fora a viagem é fascinante. Há uma vida dentro do comboio que dá vontade de explorar. A carruagem bar, os corredores onde aqui e ali se abrem portas deixando ver cenas mais ou menos privadas e a nossa “couchette”, onde se adormece com o embalar do Expresso do Oriente a percorrer toda a Turquia com a calma de quem não tem horas para chegar.

Mas chega, pontualmente. Deixámos o Dogu Express já com o chamamento do Adhan a passear pelos céus da cidade. Estamos numa Turquia que em nada lembra o ritmo de Istambul. Uma Turquia mais conservadora, onde o tempo parece passar mais devagar. Algures, no percurso, o comboio para e podemos ver a sua extensão total. São dezenas de carruagens que serpenteiam toda a Turquia entre paisagens inimagináveis, onde não seria estranho avistar Frodo Baggins na sua saga. "My precious", sem dúvida, aquelas horas passadas em plena contemplação.

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