Dominique Perrault: “Procuro desenvolver a cidade em direcção ao subsolo"

Nome de referência da arquitectura contemporânea, Dominique Perrault veio ao Porto falar das relações desta disciplina com o vazio. François Mitterrand, Álvaro Siza e Souto de Moura, mas as potencialidades do subsolo para o futuro das metrópoles.

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Dominique Perrault na Casa da Música Fernando Veludo/NFACTOS

O arquitecto da nova Biblioteca Nacional de França (BNF, 1989-95), em Paris, foi um dos convidados, no início desta semana, do ciclo de conferências SOS – Speeches on Space, que teve lugar na Casa da Música, no Porto. Na Sala Suggia, Dominique Perrault foi apresentado pelo seu amigo Eduardo Souto de Moura, que o radicou na linha de um Mies van der Rohe, e usou conceitos como “vazio”, “silêncio”, “transparência” e “pureza” para classificar a sua obra. “De vez em quando, quando isso me interessa, copio-o”, confessou o Pritzker portuense.

Dominique Perrault (n. Clermont-Ferrand, 1953) é um dos grandes nomes da arquitectura francesa e contemporânea, com obra construída em várias partes do mundo. As DC Towers (2004-12), actualmente em fase final de construção em Viena, o velódromo e a piscina olímpicos de Berlim (1992-99), o Tribunal da Comunidade Europeia no Luxemburgo (1996-08), o Centro Olímpico de Ténis em Madrid (2002-09), o Centro Pompidou em Metz (2003), ou o campus da Universidade Feminina de Ewha, em Seul (2004-08), são algumas das suas realizações mais mediáticas.

Entre elas não está, contudo, a Casa da Música, projecto a que concorreu, mas em que foi preterido por Rem Koolhaas. Curiosamente, uma década antes, tinha “vencido” o holandês no concurso para a BNF – “é a vida dos arquitectos”, diz. Foi num camarim de solista da Casa da Música que Perrault falou ao PÚBLICO, antes da sua intervenção sobre as relações da arquitectura com o vazio, a partir de meia dúzia de projectos seus, numa Sala Suggia bem composta de estudantes daquela disciplina.

O que acha da Casa da Música?

É a primeira vez que cá venho. É uma impressão muito forte. Agrada-me muito a radicalidade do edifício. Cá dentro, estamos verdadeiramente dentro de uma pedra, a partir da qual temos belas vistas sobre a cidade, o que é excepcional. Também me agrada a utilização dos materiais, como o chão em metal, que também utilizo muito, como actualmente no restauro do Pavilhão Dufour em Versalhes, onde estamos a fazer um chão em parquet exactamente com o mesmo desenho clássico do séc. XVIII, mas em metal. E é bonito.

Disse que vai falar aos estudantes de arquitectura sobre o vazio… Um tema inesperado para uma conferência de um arquitecto.

Vou falar do vazio, que é, não o que separa, mas o que liga os objectos. E mais ainda na arquitectura, onde há uma ligação entre as casas: há uma rua, que é um espaço vazio, mas que faz a ligação entre os edifícios, e, nestes, há o vazio entre as paredes, que as liga. Vou falar sobre a presença e a ausência da arquitectura.

Defende que a arquitectura é um elemento da natureza...

A arquitectura é mais um elemento da paisagem do que da natureza. Tudo é paisagem, hoje em dia. Uma rua é também paisagem, não natural, mas construída. A arquitectura participa, pois, na construção da paisagem. Deste ponto de vista, ela pode aparecer ou desaparecer. Muitos dos projectos que fiz falam justamente da ausência da arquitectura.

A Biblioteca Nacional de França, por exemplo. Toda a gente fala da biblioteca, e das quatro torres que a formam, mas ¾ do projecto são o vazio entre esses edifícios, de onde se vê o céu. E há o vazio entre as salas de leitura, que é o jardim. A biblioteca é, de facto, um monstro – tem três vezes o volume do Centro Pompidou! E aqui fui eu que ganhei o concurso ao Rem Koolhaas (risos) – é a vida dos arquitectos. O projecto dele era um cubo de 100 x 100 metros, um volume enorme. Eu fiz exactamente o inverso: propus o vazio, com o espaço público, que, na realidade, é o tecto da biblioteca, entre as torres.

Fiz o mesmo género de trabalho na Coreia do Sul, na Universidade Feminina de Ewha, em Seul. Mas aqui trata-se mesmo de um projecto-manifesto – é a construção de uma paisagem; a universidade está aprisionada na topografia. Este é um aspecto determinante da arquitectura contemporânea, a capacidade de aparecer mas também de desaparecer. Não ser a repetição da arquitectura clássica, que é uma arquitectura de fachadas: a fachada que olhava o homem, e o homem que admirava a fachada. A arquitectura contemporânea é muito mais uma substância, é algo onde podemos passear. Como aqui, na Casa da Música...

Defendeu, numa entrevista, que os grandes edifícios devem estar sempre abertos ao público.

Todos estes grandes projectos de que falo são financiados por dinheiros públicos. O que me parece verdadeiramente interessante é que os projectos públicos permaneçam abertos à vida urbana, aos habitantes do bairro, para que as pessoas os possam atravessar e fruir sem terem necessidade de comprar um bilhete para ouvir um concerto, ou adquirir um lugar para entrar num velódromo, etc. É este o valor de um bem público.

Esta ideia do grande espaço público, que imprimiu no seu projecto da BNF, estava já presente no programa do Presidente François Mitterrand?

Não. A única coisa que estava enunciada era “construir uma biblioteca”. Mas era uma biblioteca no meio de nenhures, na altura. Tratava-se de um terreno deserto na margem do Sena, onde havia apenas alguns armazéns.

O projecto da nova biblioteca era também o de se construir o coração de um novo bairro. E fiquei verdadeiramente surpreendido com a decisão de François Mitterrand, porque ele escolheu um projecto que construía o vazio no meio do vazio, como a raiz de qualquer coisa que iria nascer. Ele pensou imediatamente que, a partir desse lugar, tudo seria possível. Era a noção de raiz, no sentido próprio mas também no sentido figurado, poético: a raiz das árvores, do pensamento, da Cultura. Há verdadeiramente uma noção muito forte de inscrição no sítio, ligada a uma cultura do território.

E isso funcionou muito bem, porque hoje vemos aí verdadeiramente um novo bairro, com habitação, lojas, cinemas, cafés, em volta da biblioteca. Quando fez o projecto, era assim que o imaginava?

Eu não imaginei, evidentemente, a forma como isso se iria verificar. Mas sabia que iria existir aí um novo bairro de Paris, que incluía, de resto, a ligação à outra margem do Sena – e a ponte pedonal já estava prevista no programa do concurso.

Que memória guarda dos seus encontros com François Mitterrand aquando da realização da BNF?

Toda a gente, em França – e por diferentes razões –, reconhece que François Mitterrand foi um homem excepcional. O François Mitterrand que eu conheci era um homem livre. Fazia o segundo mandato de sete anos de Presidente. Foi por isso que pôde envolver-se desse modo com o projecto da BNF, fazer algo totalmente novo.

Ele sabia que estava no fim da sua vida, não só política mas também como homem. Encontrei-me com ele mais de vinte vezes em cinco anos. E fui só três vezes ao Eliseu, já que a maior parte das vezes era ele que vinha ao atelier ver como o projecto evoluía. Não para vir controlar ou orientar nada, mas justamente para sentir, e saber que estávamos a trabalhar para realizar o seu projecto.

Ele sempre definiu a biblioteca, não como um lugar onde se pudesse encontrar todos os livros – isso era para ele evidente –, mas sobretudo como um lugar de estudo, onde toda a gente podia investigar e trabalhar em comunidade, num lugar que o inspire. Este conceito de uma grande biblioteca continua actual, e justo.

Vai falar, na Casa da Música, para jovens estudantes de arquitectura, que vivem actualmente perante um quadro nada animador, num país onde não há trabalho, e onde a mensagem que ouvem a cada momento é a da necessidade de emigrar…

Efectivamente há muitos portugueses a trabalhar no meu país, como também italianos, espanhóis... Há alguns anos, havia polacos, alemães… Continuo a pensar que vivemos numa época paradoxal, porque as dificuldades económicas e sociais são imensas. Mas, ao mesmo tempo, assistimos a transformações no modo de produção, a novas formas de relação humana, também a nível pessoal, com as redes sociais.

Agora partilha-se tudo: os quartos, os carros... Vivemos numa economia de partilha como nunca houve. Podemos ver isso como algo muito positivo. Simultaneamente surgem novos modos de produção que, para os arquitectos, significam uma revolução. Trata-se, agora, de ser capaz de desenhar e ligar daí directamente à fábrica. Esta transformação dos utensílios industriais está em curso em todo o mundo. O arquitecto desenhará, e essa informação será enviada directamente para as máquinas e os robôs que fabricarão as peças, e as empresas juntá-las-ão depois para construir os edifícios.

Vivemos um período em que nos sentimos extremamente indefesos. É o fim de um ciclo da História: recompõem-se os modos de produção, as relações sociais, as vidas afectivas, a relação com o planeta e o ambiente. Mas, em contrapartida, para os arquitectos, vão-se criar novos trabalhos…

Regressando ao seu trabalho, as suas obras são marcadas por uma certa sofisticação tecnológica, e há mesmo quem veja a sua arquitectura como a representante de uma certa ideia da (alta) cultura francesa, com o seu glamour. Vê-se como um archi-star?

Vejo-me como um arquitecto clássico, no sentido do Século das Luzes – o tempo do grande classicismo. Por exemplo, não vejo a simetria como sendo uma figura desinteressante, como pensam muitos arquitectos. É por isso que não me vejo assim tão glamouroso.

Os arquitectos do glamour são mais os do movimento, os de uma certa complexidade de formas. Mas gosto muito de usar a simetria para criar falsas simetrias, para criar relações em que se pensa que as coisas estão muito bem ordenadas, mas depois descobre-se que, afinal, elas são mais dinâmicas, mais cinéticas e estão mais em movimento do que as figuras estáticas da simetria. Ensinaram-nos que a simetria é uma figura estável, inerte. Mas é o contrário – e é isso que nos mostra, por exemplo, a arte moderna, que utiliza elementos que se ordenam e depois desordenam; são perfeitamente reguladas, mas, se lhe mexemos, criamos novas percepções.

É por isso que reivindica ser um artista, sendo arquitecto?

Sim. Mas no sentido em que há criação. Mas nós, arquitectos, somos artistas impuros. Quer dizer, somos criadores numa parte muito ínfima da nossa existência. O resto dela é uma relação muito democrática, ligada à economia, à política, à técnica, à sociologia, à vida social, etc.

Como vê o sistema archi-star, nomeadamente com arquitectos como Zaha Hadid, Frank Gehry, ou Rem Koolhaas, que convocam sempre uma grande atenção mediática?

Os arquitectos são um tecido humano. Como noutras profissões, há a situação do star-system, mas há também a do trabalho artesanal. Isso faz parte do mundo da arquitectura. Não sou a favor nem contra. Se Siza aparece como uma star do business, é porque há uma procura, uma atenção à sua obra…

Mas dificilmente vemos em Siza um archi-star…

Siza tem o seu mundo, a sua obra, que acontece numa espécie de felicidade delicada. Fui hoje ver a Faculdade de Arquitectura [do Porto], e é extraordinária. O que se sente é que ele não faz nenhum esforço. Na arquitectura de Frank Gehry, como na da Zaha Hadid, sente-se que há ali muito esforço para criar todas aquelas formas, o que é impressionante. Há o belo nesse esforço. Em Siza, é o belo natural. Não é a mesma personalidade, nem a mesma obra, nem a mesma psicologia. É maravilhoso que haja um Frank Gehry e um Álvaro Siza!

E a obra de Eduardo Souto de Moura?

Gosto muito, também. Sinto-me muito próximo da sua radicalidade. Não é um minimalista, é mais um arquitecto radical, cuja obra faz a inscrição no lugar com muito carácter e de uma forma muito poderosa, mas sendo, ao mesmo tempo, muito contido. É um poder muito tranquilo.

O que é que lhe falta fazer? Na sua carreira, já projectou praticamente de tudo...

Hoje, o que mais me interessa é desenvolver um trabalho sobre a noção da arquitectura subterrânea. O que procuro – e que tenho desenvolvido como professor em Lausanne [Departamento de Arquitectura da Escola Politécnica e Federal, na Suíça] – é como desenvolver a cidade em direcção ao subsolo. Quer dizer, prolongar os edifícios na direcção subterrânea, criar uma nova topografia, criar raízes, conexões, tanto para as pessoas como para os transportes. Fazer ressurgir a natureza através dessa nova topografia.

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