A crise mudou a “superpotência do estilo de vida”

Austeridade no Estado, contenção nos salários e flexibilização dos mercados foram as opções da Europa para se tornar competitiva. Mas poderá o modelo alemão resultar para todos?

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“Costumava pensar que a Europa é que sabia o que estava a fazer. Deixava-se os Estados Unidos serem a superpotência militar, a China ser a superpotência económica e a Europa podia ser a superpotência do estilo de vida. Os dias em que os impérios europeus dominavam o Globo já tinham passado, mas não havia problema. A Europa ainda podia ser o local do Mundo com as cidades mais bonitas, a melhor comida e vinho, as mais ricas história e cultura, as mais longas férias, as melhores equipas de futebol. A vida para muitos europeus nunca tinha sido tão confortável. Era uma grande estratégia. Mas tinha uma grande falha. A Europa não tem dinheiro para esta reforma confortável”

A frase, escrita em 2010, é do colunista do Financial Times, Gideon Rachman, e resume o que Europa sentiu quando, ainda a recuperar do impacto da crise financeira internacional nascida nos EUA, se apercebeu que iria agora cair na sua própria crise, com dimensões ainda mais difíceis de ultrapassar.

Passados quatro anos desde o início da crise da dívida soberana que colocou em causa a própria existência do euro e fez os países periféricos da zona euro caírem em recessões históricas, este dilema não só permanece como ganhou ainda mais força. Será a Europa capaz de garantir a manutenção do seu estilo de vida? Ou será este estilo de vida incompatível com a capacidade de competir com outras economias no palco mundial?

É verdade que este problema não nasceu com a crise da dívida soberana. Durante as últimas décadas a Europa viu os Estados Unidos registarem taxas mais altas de crescimento e outros actores como a Ásia e a América Latina ganharem peso na economia mundial e a competirem na atracção de empresas multinacionais. Os mais críticos há muito dizem que o modelo europeu de menos horas trabalhadas, salários relativamente altos e despesas sociais do Estado mais elevadas retira competitividade à economia, o que inevitavelmente conduzirá a uma perda de riqueza e poder para outros pontos do Globo. Os defensores do modelo europeu, pelo contrário, dizem que a opção por um Estado social mais forte e uma maior qualidade de vida fazem parte de um modelo económico que aposta antes na qualificação e na inovação e que consegue manter uma maioria de países europeus nos vários rankings de competitividade que são publicados internacionalmente.

Às crescentes ameaças competitivas vindas do exterior os líderes europeus responderam com o lançamento de vários programas estratégicos de reforço da competitividade, dos quais a Estratégia de Lisboa foi o exemplo mais marcante e recente.

A crise da dívida soberana, que teve início em 2010, levou contudo a que a questão se tornasse de repente muito mais urgente. E, mais importante que isso, conduziu a que os líderes europeus tomassem uma opção de política económica muito mais definida do que anteriormente.

Primeiro nos programas de ajustamento lançados pela troika na Grécia, Irlanda e Portugal e depois através da introdução de regras como o Tratado Orçamental, os líderes europeus decidiram que o caminho para tornar a Europa viável económica e financeiramente  é uma forte austeridade no Estado, uma limitação acentuada dos custos no sector privado e a introdução de maior flexibilidade nos mercados, através das chamadas reformas estruturais. A ideia é a de que, tal como como foi dito nos países periféricos alvo de uma intervenção da troika, uma boa parte da Europa tem estado a viver acima das suas possibilidades e agora chegou definitivamente a hora de algo mudar.

O resultado imediato destas políticas na economia é, para já, decepcionante. No seu último relatório semestral sobre a economia mundial, o Fundo Monetário Internacional destacou a Europa como o ponto do Globo onde a recuperação da economia está com mais dificuldades em arrancar. As previsões apontam para que a União Europeia continue a crescer, pelo menos até 2018, a um ritmo mais lento do que os Estados Unidos, que têm optado por uma política de estímulos bastante mais agressiva tanto a nível orçamental como monetário.

De igual modo, no mercado de trabalho as notícias são negativas para a Europa. Enquanto nos EUA a taxa de desemprego começou a descer a partir de 2011 e se encontra já na casa dos 7%, na União Europeia o indicador ainda não começou a cair, mantendo-se próximo dos 12%.

No entanto, os defensores desta opção política acreditam que as reformas estruturais e da resolução dos problemas orçamentais vão acabar mais tarde ou mais cedo por ter o seu impacto positivo na economia e vêem no aparecimento de taxas de crescimento positivas nos países periféricos e na descida de taxas de juro registada nos mercados os sinais de que o caminho seguido foi o mais correcto.

Na prática, a estratégia de política económica seguida na Europa foi baseada na ideia de que o modelo alemão de crescimento pode ser alargado com sucesso aos outros países. A Alemanha, que realizou reformas estruturais nos anos 90, manteve os défices públicos controlados e aplicou durante anos consecutivos políticas salariais de grande moderação, conseguiu registar taxas de crescimento positivas nos últimos anos graças à força das suas exportações, conseguindo fazer descer o desemprego quando em muitos pontos do continente europeu este estava a subir.

Agora, para seguir o mesmo caminho, o que a Europa tem de fazer é também mudar indicadores que lhe são desfavoráveis na competição internacional, como o grau de protecção no emprego – que de acordo com o índice calculado pela OCDE está na Alemanha em 2,87 pontos e em Portugal em 3,18 pontos, contra apenas 0,26 pontos nos EUA – ou os salários pagos por hora – que estão em 25,8 dólares na Alemanha contra 23,32 dólares nos EUA e em 7,16 dólares em Portugal contra 1,36 dólares na China.

Esta ideia de que o modelo alemão pode ser a solução para o resto da Europa tem contudo sido alvo de críticas, pelo que dizem ser a impossibilidade prática de, numa Europa muito interligada, de repente todos quererem exportar mais do que importam e pelos efeitos de longo prazo que uma política de contenção de custos muito acentuada pode vir a ter. “Embora esta abordagem tenha funcionado bem por alguns anos na Alemanha, não pode servir como modelo para a Europa. Se todos seguissem a opção alemã de cortar a despesa em investigação e desenvolvimento e em educação, isso significaria uma taxa mais baixa de progresso tecnológico e, consequentemente, um crescimento de longo prazo mais baixo do que seria possível. E se imitassem a política salarial deflacionista da Alemanha isso reduziria a procura agregada. Em vez de copiarem a abordagem alemã, os líderes europeus deveriam examinar cuidadosamente quais os elementos das reformas introduzidos na Alemanha na última década que poderiam realmente aumentar a produtividade, o produto e o emprego, sem um efeito nocivo noutros países na Europa e no crescimento de longo prazo”, escreve Sebastien Dullien, do think tank European Council on Foreign Relations, numa nota recente sobre os desafios de política para a Europa.

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