Nunca a música clássica foi tão música pop

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Francesco Tristano e Sara Ott

O muro que mantém a uma distância de segurança o circuito da criação erudita e o universo sempre em expansão — e sempre à procura de novos territórios — da pop parece mais poroso. Figuras híbridas como Francesco Tristano, Nico Muhly ou Owen Pallett, que esta semana regressa a Lisboa, tornaram mais intenso o tráfego entre os dois mundos

Tendemos a pensar que existe um muro a separar a música clássica da música pop. Mas é uma barreira que está mais na imaginação, e nas construções sociais, do que na realidade. Quando nos atrevemos a trespassar essa fronteira transparente, acabamos por constatar que ela nunca existiu realmente. Essa separação é apenas uma forma de tentar organizar a realidade, acabando por criar hierarquias e diferenças artificiais.

No desmoronar dessas trincheiras são fundamentais os agentes que se movimentam nos interstícios das duas direcções. Conhecem os dois lados, as suas aptidões e complexidades. Permitem-se até rir das divisões, que nunca vislumbraram. “Enquanto os outros miúdos da escola ouviam rock, eu ouvia música clássica”, diz-nos o canadiano Owen Pallett (ver texto secundário), um dos músicos que riem dessas repartições, falando do período, na infância e na adolescência, em que aprendeu a tocar piano e violino.

“Um dia fui ‘apanhado’ por um professor a ouvir, por curiosidade, Led Zeppelin. Espantou-se por um dos seus mais brilhantes alunos estar a ouvir aquela música ‘barulhenta’”, continua o canadiano, que frequentou escolas de música clássica, criou bandas-sonoras (esteve nomeado este ano para um Óscar pela música do filme Uma História de Amor, de Spike Jonze), concebeu duas óperas e tem uma carreira a solo. Na próxima terça-feira, dia 27, apresenta no Lux, em Lisboa, o novo álbum In Conflit, e uns dias depois, a 31, estará no Rock In Rio com os Arcade Fire, o grupo rock com que colabora desde sempre. 

Owen Pallett está longe de ser caso único. Existem muitos outros músicos com menos de 40 anos — pensemos em Nils Frahm, Peter Broderick, Douglas Dare, Hauschka ou James Blackshaw — que passaram pelo conservatório mas nunca perderam de vista outras aproximações, situando-se numa terra híbrida, nem clássica nem pop, mas isso também. Gente flexível, que tanto actua no Maria Matos e no MusicBox como na Casa da Música, e que não tem necessidade de afirmar uma identidade. É, simplesmente. 

Não é, sequer, um acontecimento de agora. Dir-se-ia apenas que, na actualidade, estamos mais conscientes do tráfego entre música clássica e música pop e vice-versa. Os sintomas acumulam-se, com nomes como Nico Muhly, Ben Frost ou os suecos The Knife a comporem óperas, enquanto a produção de clássicos utiliza cada vez mais a tecnologia e a linguagem pop. O pianista luxemburguês Francesco Tristano tanto vem a Lisboa para tocar Bach nos Dias da Música do Centro Cultural de Belém como de seguida vai ao Lux para uma sessão de tecno. E uma das editoras mais afamadas da clássica, a alemã Deutsche Grammophon, desafia músicos da cultura pop (Herbert, Carl Craig, Max Richter ou Jimi Tenor) a recriarem Mahler ou Vivaldi.

Talvez ambas necessitem uma da outra. A clássica parece ter-se acomodado depois da iconoclastia da primeira metade do século XX e precisará de um novo Pierre Boulez ou de um novo Igor Stravinsky para agitar as águas. Por outro lado, e apesar da sedução dos últimos tempos junto de um público mais novo e oblíquo, os concertos de música clássica continuam a apelar apenas aos nichos. Do lado da pop, a clássica constitui fonte de inspiração. Depois de esgotadas muitas fontes de revitalização das últimas décadas, um processo a que nem o jazz escapou, a autodigestão da pop acelera e quem sabe se a música clássica não será o próximo baú a vasculhar? O certo é que não existem muitos territórios virgens, a menos que se repitam ciclos de reciclagem. 

O crítico de clássica da revista New Yorker, Alex Ross, autor do ensaio O Resto É Ruído — À Escuta do Século XX (2007), já havia intuído que a clássica, em particular na sua expressão mais grandiosa, a ópera, poderia converter-se numa opção de consumo entre o público mais mundano: “A música clássica é uma cultura à margem em muitos sentidos, ainda pouco explorada, ao nível da cultura de massas, e isso pode ser interessante para quem anda à procura de novos estímulos. Embora os processos de transição sejam lentos, acredito que a ópera pode ser um desses territórios susceptíveis de interessar quem gosta, por exemplo, de Radiohead ou Björk.”

Na sua visão, apesar dos problemas de renovação de públicos, a música clássica atrai indivíduos bastante mais diversos do que tendemos a pensar. “Vejo casais que vão ouvir uma sinfonia porque é romântico. Vejo gente com roupa moderna atraída por um qualquer elemento contemporâneo do programa. A música clássica por vezes atrai público que não encaixa bem noutros lados, e tanto são jovens e velhos como pessoas de meia-idade. Esses desalinhados poderão ser mais facilmente conquistados.”

Na temporada 2013-14 dos principais teatros de ópera do mundo, da Metropolitan Opera de Nova Iorque (MET) à Royal Opera House (RHO) de Londres, encontravam-se alguns sintomas que parecem dar razão a Alex Ross. No final do ano passado, a MET estreou Two Boys, ópera composta por Nico Muhly, com libreto de Craig Lucas, fixando um tipo de linguagem identificável com este tempo. Em palco estava uma história de amor que reflectia como a Internet mudou as nossas vidas, envolta numa linguagem na linha do pós-minimalismo apreendido em Philip Glass. 

No contexto do MET — em cuja assistência se misturam a aristocracia nova-iorquina, os turistas e os boémios —, a aposta em Two Boys foi encarada como natural. Tratava-se de projectar um compositor de 32 anos e, com ele, tentar atrair e formar o público do futuro. Um público que, se seguiu até aqui a carreira de Nico Muhly, tanto gosta de Gorécki, o compositor polaco, como de grupos na linha dos Grizzly Bear, Sufjan Stevens, The National, Antony, Björk ou Owen Pallett, tudo gente com quem colaborou.

Ultimamente, aliás, Nico Muhly parece estar em todo o lado, compondo para dança, teatro ou cinema. É incansável. Passou pela sala de aulas da Universidade de Columbia e pela exigente Julliard, trabalhou ao lado de Philip Glass e gravou álbuns a solo (Speaks Volumes, de 2007, e Mothertongue, de 2008) que se movimentam entre géneros (clássica, pop, folk, electrónicas) de forma natural. Há dois anos, em entrevista, antecipando um concerto no Maria Matos ao lado de Ben Frost, Sam Amidon e Valgeir Sigurõsson, dizia-nos que encarava a sua actividade como simples trabalho, não se revendo na ideia romantizada do artista. “Essa noção de que um compositor é um génio desligado do mundo não faz sentido. É ridículo. Ser compositor é um trabalho.”

Já na programação da última temporada da RHO, de Londres, encontrávamos outro corpo estranho, The Wasp Factory, primeira ópera composta pelo australiano (a residir na Islândia) Ben Frost, escrita por David Pountney — um relato de horror gótico protagonizado por Frank, um assassino infantil. Para Frost, que já actuou em Portugal por mais de uma vez e que provém dos cenários mais exploratórios da electrónica, a conexão com a música contemporânea faz-se através do selo islandês Bedroom Community, daí que compor uma ópera tenha sido uma tentação. 

Outra proposta inusitada da RHO decorreu há semanas, tendo o músico inglês Matthew Herbert como protagonista. O conhecido manipulador das electrónicas levou a cabo a reconstrução de Faust, de Charles Gounod, ópera-chave do romantismo francês, num espectáculo de interacção entre ópera lírica e electrónica, mais um sintoma de que algo está a mudar no habitualmente conservador terreno do comissariado de novas produções.

Circuitos cruzados

Não é fácil competir com Wagner, Bellini, Mozart ou Verdi. Não é simples incorporar novos clássicos no repertório habitual. As obras compostas nos últimos anos vivem na quase clandestinidade. Uma das óperas de produção mais recente a integrar o cânone foi Nixon In China (1986), de John Adams, mas em geral as novas obras têm dificuldade em perdurar no tempo, em termos de exibição e de circulação, mesmo quando se baseiam em produções oscarizadas, como aconteceu no ano passado com Brokeback Mountain, o filme de Ang Lee que virou ópera com partitura do compositor americano Charles Wourinen. 

Mas mesmo assim algo parece estar a mudar nos mais importantes palco de ópera do mundo, com cada vez mais convites endereçados a compositores com um pé na experimentação e outro na cultura popular, ajudando a rejuvenescer os programas e, por vezes, a atrair novos públicos. Também os The Knife, uma das unidades criativas mais fascinantes do nosso tempo, criaram uma ópera (Tomorrow, In A Year, de 2010), baseada em A Origem das Espécies, de Darwin — teve estreia em Copenhaga e depois foi apresentada em Londres. Os suecos sempre se afirmaram como sendo algo mais do que um mero projecto musical, uma experiência total com um esqueleto de ideias e um imaginário visual singular, daí que o passo encetado tenha parecido natural. 

Sintomático também é o facto de o importante festival britânico Unsound, conectado com as electrónicas, ter incluído na última edição, pela primeira vez na programação, a representação de uma ópera — uma nova produção do Oedipus Rex, de Stravinsky. 

Ao mesmo tempo, existem cada vez mais intérpretes da música clássica que se relacionam com novas gerações. Pelo seu talento, mas também porque utilizam novas estratégias de imagem, ou porque propõem recitais e gravações com um programa ousado. Assumem riscos e novos enfoques, acabando por seduzir outros públicos. Como acontece no universo pop, as grandes editoras, como a Deutsche Grammophon ou a Decca, têm consciência desse facto, fomentando uma espécie de circuito de estrelas da clássica, no qual a juventude dos intérpretes funciona como incentivo comercial. 

É esse o caso da excelente violinista americana Hilary Hahn (que gravou Silfra, em 2012, com o pianista Hauschka), ou da violinista Janine Jansen, que no ano passado lançou todo um disco dedicado a Prokofiev, ou da excêntrica soprano francesa Patricia Petibon, ou do tenor alemão Jonas Kaufmann. E é esse também o caso de Lang Lang que, ao lado de Yuja Wang, é um desses instrumentistas orientais educados segundo uma disciplina férrea, tendo conseguido alcançar grande projecção de forma muito rápida. O pianista chinês passeia-se pelas teclas de forma estilizada na abordagem às grandes referências do romantismo — Liszt, Chopin ou Schumann. Para uns, é demasiado óbvio e aparatoso. Para outros, contribui para fazer chegar o piano às massas, como se atesta ouvindo Prokofiev 3 Bartok 2 (2013), acompanhado da Filarmónica de Berlim, com direcção de Simon Rattle. 

Um dos casos mais curiosos do circuito da clássica é justamente o do pianista Francesco Tristano, que assinou pela Grammophon depois de ter lançado três álbuns pela editora de tecno Infiné. Interessa-se tanto pela música barroca como pelo tecno de Detroit, propondo programas em auditórios com partituras originais de Bach e adaptação de clássicos de Carl Craig, um dos pioneiros do tecno.

Como o mítico Glenn Gould, é obcecado pelo grande compositor alemão e por procurar formas inéditas de tocar e gravar. Nunca lhe interessou ser “apenas intérprete da música de compositores mortos”, dizia-nos há dois anos. Nem fica cativo da ideia de ser apenas intérprete, compondo também, para além dos territórios, “porque não existem hierarquias no som ou nas direcções musicais, apenas diferentes formas de as organizar”.

Na actualidade, encontra-se em digressão com Alice Sara Ott, metade japonesa, metade alemã, pianista de grande técnica, com quem gravou o álbum Scandale, com edição europeia para Setembro. As primeiras gravações de Ott jogavam pelo seguro (Liszt, Chopin), mas a partir das suas interpretações de Beethoven converteu-se numa das figuras emblemáticas da Grammophon. O mesmo sucede com a francesa Hélène Grimaud, capaz de interpretar, com uma percepção muito particular, os silêncios, os acentos suaves e profundos, ou com Valentina Lisitsa, uma ucraniana a residir nos Estados Unidos, que se deu a conhecer através do YouTube, onde colocou gravações suas a interpretar Schubert ou Mozart. Depois assinou pela Decca e desde 2012 está instalada como uma das principais pianistas do circuito.

O caso de Tristano faz lembrar o de Arthur Russell, o violoncelista e compositor falecido em 1992 que foi recuperado nos últimos anos, influenciando uma nova geração de músicos (Kelley Polar, Owen Pallett, Perfume Genius). Durante o dia tocava ao lado de John Cage ou Philip Glass, à noite perdia-se nas discotecas de Nova Iorque no período da febre disco, acabando por criar uma música visionária que ficava tanto a dever à pop como à clássica. Mas Tristano não é o único a encontrar paralelismos entre electrónicas e clássica. Jeff Mills, Thomas Fehlmann, Carl Craig, Moritz Von Oswald ou Sutekh, que recriou Bach ou Handel, também se movimentaram entre essas disciplinas. 

O ouvinte transversal

A apetência para o relacionamento com os mais diversos géneros não está apenas do lado de alguns músicos. Do público também. Hoje qualquer amante da música orquestral de Colleen ou de Joanna Newston conhece, por exemplo, o maestro venezuelano Gustavo Dudamel, que reafirmou o papel da música clássica como transformador social. Rui Martins, de 29 anos, é um desses consumidores, que tanto frequentam os recitais da Gulbenkian ou o festival Dias da Música como os concertos do Maria Matos ou da ZDB, e não encontra nenhuma contradição. “Gosto acima de tudo de música que espelhe introspecção e contemplação, e isso é possível de vislumbrar nos mais diversos campos musicais”, justifica, “mas também gostava de ver uma ópera de David McVicar, por exemplo, pelo lado excessivo. As duas coisas completam-se, não se anulam.”

Da mesma opinião é Luís Tinoco, director do Festival Jovens Músicos, que há um ano nos dizia que o evento não só tenta acompanhar a realidade como estimulá-la, até porque o perfil dos músicos tem vindo a transformar-se nos últimos tempos. “Hoje um jovem músico que participe num concurso destes tanto ouve Bach como pop ou jazz. Tem uma forma transversal de ouvir e de lidar com a música. E os festivais tentam reflectir isso.” 

É verdade. Mas ainda existe um caminho a percorrer. Como escreve David Byrne no livro How Music Works (2013) talvez a situação só mude verdadeiramente quando o paradigma educativo mudar. Na sua visão teríamos mais a ganhar em proporcionar aos cidadãos a possibilidade de tocarem música, mesmo que de forma imperfeita, do que ensinando-lhes a apreciar Bach. Ou seja: ganharíamos mais formando amadores do que formando consumidores. 

Na sua perspectiva, é como se a grande arte, sempre descrita como intemporal, universal ou genial, nada tivesse a ver connosco, gente comum, que tem de limitar-se a admirar o esforço dos génios. Encorajar a criatividade dos amadores, em vez de lhes dizer que devem aceitar passivamente o ensinamento dos mestres, é assegurar que a música mantém alguma forma de compromisso com a vida — e ao mesmo tempo de anular as hierarquias que persistem, movidas por atributos morais, e que nos levam a dizer que existem músicas mais refinadas, intemporais ou imunes a fórmulas do que outras. No limite, é por isso que algumas formas musicais são financiadas e outras não, umas encaradas como mero negócio e outras como serviço público, mesmo quando se constata que existem cada vez mais músicos de territórios de fronteira — nem pop, nem jazz, nem clássica, mas tudo isso em simultâneo. 

Às tantas, David Byrne interroga se ao enfatizarmos apenas a preservação do passado não estaremos a hipotecar o futuro, e tem alguma razão. É por isso que músicos como ele, ou como Nico Muhly, Francesco Tristano ou Owen Pallett, são importantes, estabelecendo pontes entre territórios, pertencendo a vários mundos sem a pressão de terem de optar por um deles, assumindo a sua dualidade, mostrando-nos que a realidade é por vezes mais complexa e entusiasmante do que as gavetas onde a tentamos arrumar.

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