Foi há cinco meses que o Rui veio falar comigo. O assunto era sério. Surgia depois de algumas conversas sobre o estado da cultura no nosso país. O Rui tinha um projecto para me propor.
O Rui é um rapaz cheio de projectos, é um rapaz cheio de sonhos e é com os sonhadores que eu me dou bem. Apresentou-me ao Pedro e ao Miguel. Reunimo-nos sem nunca nos termos visto e era a mesma inquietação que nos unia.
A sala de reuniões do nosso escritório foi sempre uma janela pequenina do “chat” do Facebook. Eram tantas ideias, tanto o entusiasmo que se por ventura eu queria ir buscar uma caneca de leite quente e meia dúzia de biscoitos, já me perdera, pela certa, na conversa. Decidir o nome do nosso espaço foi outra aventura, e não chegou a haver consenso. Tínhamos medo de assustar as pessoas, não queríamos que o nome do nosso grupo nos abafasse. Quando finalmente o decidimos, chegou a Lydie e o André. Eu chamei o João.
Não trazíamos uma novidade, nem um produto a comercializar. Até já havia páginas semelhantes, mas sabíamos que éramos diferentes. O nosso sonho era o contágio. Queríamos passar esta febre de quem quer aprender sempre mais e mais e mais. Só ambicionávamos poder mostrar aos outros tudo aquilo que nos alimenta a alma. Não somos doutorados nem especialistas de especialidades, somos só jovens irrequietos, embriagados de emoções com vontade de dar aos outros aquilo que nos faz sentir bem a nós.
Poucos sabiam quem estava por trás da Comunidade Cinema e Arte, mas isso também não era o que interessava. Importante era receber todos os dias a inspiração da genialidade dos melhores.
Suspirámos desde Saramago a Pessoa, Rimbaud a Eugénio de Andrade, gritámos com o Pasolini e Bukowski, perdemo-nos com o Dostoyevsky e Tolstoy. Amámos com Jean- Luc Godard, Truffaut, Pedro Costa, Tarkovsky e Bergman. Fomos felizes com Wes Anderson, Hayo Miyazaki e João César Monteiro.
Queríamos abrir horizontes divulgar a arte e a verdade é que não consigo listar todos os escritores, realizadores, fotógrafos e pintores, músicos e escultores que conseguimos levar até às mais de sete mil pessoas que nos seguiam.
Queríamos mostrar o Mundo para lá das telenovelas e "reality shows", os livros para lá de Pipocas e Margaridas , as fotografias para lá dos espelhos, as músicas para lá do Quim ou do Toni. Todos os dias recebíamos e-mails e mensagens privadas: as pessoas gostavam do que fazíamos e queriam ajudar. Entraram mais elementos para a nossa equipa, outras enviavam "discos pedidos" de partilha. Anunciámos eventos e encontros e chegámos a dar voz a pessoas que nunca publicaram os seus trabalhos.
Mas hoje estou mesmo muito triste. Hoje quando acordei já não existia a Comunidade de Cinema e Arte, já não havia poemas, nem frames, nem músicas nem nada. Ao que parece agredimos alguém com a nossa "obscenidade".
Bem, uma vez, quando partilhámos a imagem da escultura de David de Michelangelo fomos denunciados pelo conteúdo "obsceno" e também ficámos sem poder aceder ao facebook por uns tempos. Ficámos congelados de indignação, claro. Quando é que nos passou pela cabeça que alguém visse o David como uma obscenidade?
Mas desta vez o nosso pecado foi mais longe: os dois frames do filme “La vie d'Adèle - Chapitres 1 et 2” em que duas jovens raparigas se amam deram-nos direito a um “warning” e à eliminação da nossa página. A concretização do amor de Adèle por Emma perante o júri pudico, que é cego para além do físico, simbolizou o nosso fim.
Estou triste, pois claro que estou, era contra estas mentalidades que lutávamos mas, caso as coisas não mudem, é certo que nós Comunidade Cinema e Arte não mudamos por coisa nenhuma. O mesmo sonho. Novo projecto.