O fascínio dos irmãos Dardenne por uma estrela pouco proletária

Marion Cotillard é a protagonista de Deux Jours, Une Nuit, mais uma entrada na competição de Cannes para dois cineastas que têm lá em casa duas Palmas de Ouro.

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Trailer Deux jours une nuit

O (recente) fascínio dos irmãos Dardenne por actrizes profissionais que são também vedetas explica-se por uma (antiga) observação de alguém, feita a Jean-Pierre e a Luc, que sendo eles irmãos, o seu cinema só se poderia interessar por figuras masculinas ou por petites filles, mas nunca por ele poderia passar o desejo cinematográfico por uma mulher.

A observação ficou dentro deles, sem criar angústias ao que parece, e em 2011, com Le Gamin au Vélo, aceitaram inquietar essa espécie de destino que alguém lhes vaticinara. Convidaram para o seu universo Cécile de France. Agora é Marion Cotillard, um upgrade, porque é uma imagem cheia de maneirismos de glamour, carreira internacional com Óscar e tudo. Ela é a protagonista de Deux Jours, Une Nuit, mais uma entrada na competição de Cannes para dois cineastas que têm lá em casa duas Palmas de Ouro.

Luc explica que não se trata daquela coisa de “partir a imagem da estrela”. A ideia de desafio é decisiva, batalha a travar, mas trata-se sempre de desencadear o desejo de… (afinal ele existirá). E a coisa torna-se viável a partir do momento em que, depois do coup de foudre inicial, quando eles dizem que querem a actriz e a actriz diz que sim, que também quer os realizadores, esse corpo é submetido a uma série de acções físicas nos ensaios, como andar, experimentar sapatos diferentes, atender o telefone ou cair, para encontrar o seu lugar no cinema dos belgas e o seu corpo se carregar de gravidade.

Cotillard encontrou: é uma rapariga que percorre o subúrbio de Liège em dois dias e uma noite, a pedir aos companheiros de empresa que votem pelo seu não despedimento, para isso tendo eles de abdicar de uma parte do salário. Nesse dilema que a empresa criou para os empregados – Marion não é despedida se os colegas prescindirem dos seus bónus, eis a chantagem - está uma aprendizagem moral que todos vão fazer, incluindo a personagem de Marion: a solidariedade. Algo que, como dizia Luc Dardenne em conferência de imprensa, “não é um dado natural”, nunca o foi, “nem nos movimentos sociais importantes” da História humana. “A solidariedade precisa de um acto moral, de uma decisão”.

E é assim que a personagem de Marion, depois de tanto ouvir “Põe-te no meu lugar!” por parte dos colegas, que eles não têm condições de abdicar de parte do salário, há-de ela própria ser colocada no lugar deles e ter de decidir se vai ser solidária com um colega despedido ou aceitar a sua reintegração na empresa. Digamos então que Marion se transforma numa espécie de heroína da acção moral (action hero, mesmo, porque Cotillard é vedeta internacional).

Como se o cinema dos Dardenne tivesse criado o seu “género”, com a sua coreografia e os seus efeitos, e que tudo isso, agora nesta fase das vedetas, não pudesse ser experimentado de outra forma a não ser reparando sempre nos twists do argumento ou no facto de o filme se apressar no fim para chegar à meta de uma certa exemplaridade que aparece como ligeira (“On s’est bien batus. Je suis heureuse”, diz a personagem de Cotillard, que era deprimida, tinha tentado suicidar-se, e que no final caminha orgulhosa por ter mudado a consciência dos outros e ter aprendido coisas).

Acreditamos menos em tudo isso, não acreditamos o suficiente em Marion Cotillard como proletária, apesar do seu gosto pela metamorfose física e pelo seu intenso trabalho de pesquisa feito para apagar quaisquer sinais de trabalho. Não é possível acreditar nela da mesma forma que não havia alternativa para o espectador a não ser acreditar, como se daí dependesse a vida ou a morte numa sala de cinema, na altura desconhecida na Émilie Dequenne de Rosetta (1999) – a primeira Palma de Ouro para os irmãos (decisão triunfal de um júri presidido por David Cronenberg), que regressariam ao prémio máximo do Palmarés em 2005, com L’Enfant.

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