Tribunal obriga Estado a gastar mais do que queria com pensão a menores

Para não pagar pensão de alimentos compatível com “o desenvolvimento integral” de dois jovens, ministério recorreu para o Tribunal da Relação. Sem sucesso.

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O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores paga as pensões que os pais não conseguem pagar Enric Vives Rubio

O Tribunal da Relação de Guimarães obrigou a Segurança Social a abrir os cordões à bolsa e a pagar cerca de cem euros mensais de pensão de alimentos aos dois filhos de uma operária fabril de Felgueiras. O Estado só queria contribuir com 60 euros para cada um dos jovens, cujo sustento o pai deixou de assegurar logo no ano em que se divorciou da mulher, em 2010.

Na fábrica de sapatos onde trabalha, o ordenado de Aurora Lopes nunca vai além dos 540 euros, consoante a assiduidade. É com isto, mais os abonos de família dos dois rapazes, um deles com artrite reumatóide, que se governa o mês inteiro. “A minha mãe dá-me quase sempre de comer, senão não sei como havia de ser”, explica a operária de 42 anos. “Quando estou mesmo à rasca, peço 50 euros emprestados a umas primas que estão na Suíça.”

Os rendimentos praticamente inexistentes do pai dos jovens, um com 13 anos e outro quase nos 17, não permitiram ao tribunal fixar uma pensão de alimentos que fosse além de 60 euros mensais para cada um. Mesmo assim, e apesar de continuar a estar presente na vida dos rapazes, o pai só pagou a primeira prestação. Cansada das promessas por cumprir do ex-marido, Aurora Lopes recorreu à justiça para reivindicar os direitos dos filhos.

À semelhança de outros mecanismos do mesmo género, como no desemprego, também o sector das pensões de menores conta com um fundo destinado a casos como este, em que o progenitor não consegue assegurar o pagamento a que está obrigado. Criado no âmbito da Segurança Social, o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores só financia a subsistência de crianças e jovens desde que reunidas todas as condições legais previstas.

Era este o caso: a morar com a avó dos jovens numa casa alugada, há anos que o pai dos rapazes não tinha emprego conhecido, nem tão pouco bens. Entre 2010 e 2012 viveu com o Rendimento Social de Inserção.

Tendo em conta a sofrível capacidade económica do agregado familiar e as necessidades dos menores, o Tribunal Judicial de Felgueiras decidiu que a Segurança Social pagaria não os dois euros diários (ou 60 euros mensais) a que o pai estava obrigado mas sim cerca de cem euros por mês por cada jovem.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não se conformou e recorreu da sentença. No mês passado, voltou a ser condenado pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Para obrigarem o Estado a pagar aos dois jovens uma pensão compatível com “o desenvolvimento integral da sua vida, saúde e da sua personalidade”, os juízes alegam que “estão em causa direitos sociais constitucionalmente garantidos”. A questão, admitem ainda assim, não é pacífica. “Temos algo que é a completa perversão do sistema: para o menor é preferível que o pai incumpra, única maneira de receber do Fundo uma maior prestação de alimentos”, observa um dos magistrados, que votou vencido, na sua declaração de voto. E deixa uma interrogação sem resposta: o que sucederá se o pai voltar a conseguir pagar os 60 euros mensais? “O Fundo teria que continuar a pagar a diferença entre a sua prestação e a fixada ao pai? Não faria sentido.”

O Ministério da Segurança Social diz que o caso “está já encerrado, estando a ser efectuado pagamento” à mãe conforme decidido pela justiça.

Aurora Lopes diz que ainda não recebeu um cêntimo. Segundo fonte judicial, o Estado está atrasado seis a sete meses no pagamento deste tipo de prestação social.

“Suficiente? Nunca na vida”
O procedimento habitual do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social é de recorrer de todas as sentenças que determinem o pagamento, pelo fundo, de uma prestação superior à fixada ao progenitor — independentemente da situação concreta que se lhe apresente. Ao ponto de já ter metido um recurso por uma diferença de cinco euros mensais.

“O fundo intervém nos exactos termos em que o progenitor foi condenado e não em montante superior. Entendimento que tem vindo a ser, aliás, corroborado por diversos juízes ao nível da instância dos tribunais da Relação, com muitos acórdãos favoráveis emitidos a favor do Instituto de Gestão Financeira. O recurso apresentado em Guimarães foi no sentido de vermos reposta a situação legalmente prevista”, esclarece o ministério.

A advogada que tem representado a operária em tribunal — a expensas do erário público, já que é oficiosa — considera lamentável a atitude da tutela governamental para poupar qualquer coisa como 3000 euros. É este o montante a que se chega se se multiplicar os 40 euros mensais de acréscimo que o ministério se recusou inicialmente a pagar pelo tempo que falta até os menores atingirem os 18 anos e perderem o direito à pensão. “Há juízes de primeira instância que não aceitam fixar pensões de alimentos inferiores a 80 euros, mesmo que o progenitor esteja desempregado”, diz Paula Bravo.

O filho mais velho de Aurora Lopes frequenta um curso vocacional que lhe pode abrir o caminho para se tornar professor de Educação Física. Mas franze o nariz às aulas. “‘Mãe, eu queria era sair da escola para ir trabalhar, para te ajudar’, diz-me ele”, conta Aurora.

Às vezes custa à operária negar-lhe um ou dois euros para o rapaz poder ir ao café, mas conta que o médico a avisou de que é preferível de vez em quando comerem só um bocado de pão do que faltar ao mais novo com os remédios para a artrite reumatóide. “Se são ajuda suficiente os 60 euros por mês de pensão? Nunca na vida. Quem diz isso é porque não tem filhos.”

Sentenças para todos os gostos
Quando se trata de fixar o montante a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores há jurisprudência para todos os gostos. “Isto só se resolve ou com uma alteração legislativa — que, no actual cenário [do país], não seria muito vantajosa para quem quer receber a pensão — ou com um acórdão de uniformização de jurisprudência”, diz o juiz do Tribunal de Família e Menores do Barreiro António José Fialho. Enquanto isso não acontece, o magistrado recorre ao índice de inflação para actualizar as pensões quando elas passam a ser pagas pelo fundo, em substituição do progenitor. “Desde que comecei a fazer isso nunca mais tive recursos do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social”, relata o magistrado.

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