E ao sétimo filme da competição de Cannes, uma maravilha

Le Meraviglie é, para já, o melhor filme do concurso desta edição do festival. Alice Rohrwacher, uma realizadora italiana de 32 anos, diz muita coisa sem explicar nada.

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Cinecartaz: Trailer O País das Maravilhas

Primeira sequência misteriosa: uma noite escura na Umbria italiana, faróis que varrem uma casa, os corpos deitados no interior – sobressalto: estarão mortos? Parecem acordar do tempo, como as pinturas de uma gruta despertadas pela luz.

Uma família no campo, pai, mãe e as quatro filhas, uma delas, Gelsomina, a líder das coisas práticas. O pai veio do Norte, é apicultor, intromete palavras em alemão no italiano quebrado mas fala com a mulher em francês… sem que se explique porquê, nem por que razão é que veio para o campo esta família produzir o mel com as abelhas.

Muitos perguntam em Cannes porque é que Le Meraviglie, de Alice Rohrwacher (único filme italiano em concurso, segunda longa-metragem de uma realizadora de 32 anos, a cineasta que em 2011 se estreou com Corpo Celeste), não explica as coisas. É isso uma falha no sacrossanto argumento? Essa é uma das maravilhas de Le Meraviglie, para já o melhor filme do concurso desta edição do festival: dizer sem explicar nada, dizer por exemplo que essa família tem certamente um passado, que não interessa qual é ou qual foi, mas de que se quis afastar, fugir talvez, para criar à margem o espírito da sua colmeia. De que é zelador Wolfgang, o pai, personagem em permanente crispação, olhando para todo o lado para impedir a ameaça que virá do exterior. Exerce a sua tirania com amor, mas manejando o medo, em nome da liberdade do seu grupo.

E eis que aparece Monica Bellucci, apresentadora de um show de televisão que procura eleger a mais perfeita das famílias de agricultores. Gelsomina fica atraída pela fada, Monica parece um fresco que tomou vida como no Satyricon (1969) de Fellini. Sem o pai saber, candidata a família ao reality show, que se vai realizar, imagine-se, numa necrópole etrusca.

Le Meraviglie não é um filme (só) sobre o "coming of age" (filmes sobre a passagem à idade adulta), lugar, por exemplo, em que a imprensa anglo-saxónica, prática a encontrar gavetas, o arruma – eram apenas isso Será que Vai Nevar no Natal (1996), de Sandrine Veysset, ou Nana (2011), de Valerie Massadian?

Tambem não é só um filme sobre um mundo fechado que é tocado e alterado pela contacto com exterior, e que assim se dissolve.

Não, Alice Rohrwacher não resolve nada nem decide nada para a família de Gelsomina. Le Meraviglie é uma experiência puríssima de cinema, porque é daqueles filmes que tacteiam muito junto do seu âmago: a possibilidade de, ao dar vida aos mortos, permanecer sempre em contacto com o invisível.

Alice Rohrwacher devolve então esta família ao seu tempo e ao seu sono. Num plano final lindíssimo que faz um luminoso raccord com a abertura, com aquela noite estranha, com os faróis e com aqueles corpos alongados. Mas sobre isso não se vai aqui explicar nada.

O pior Cronenberg?

Este é um dos problemas de Foxcatcher, de Bennett Miller (concurso): não ter unhas para enfrentar as zonas de sombra que criou para as personagens, não conseguir lidar com o inexplicável. O filme é baseado numa história real, aquela que pôs dois irmãos praticantes de wrestling, Mark Schultz e Dave Schultz (Channing Tatum e Mark Ruffalo), na mira de um excêntrico milionário, John Du Pont (Steve Carrel). Que seduz Mark a participar no seu sonho de criar uma equipa olímpica para os Jogos de Seul (1988).

Para Mark é uma forma de se autonomizar do irmão, seu treinador. E encontrar, como ele diz, uma figura paterna. Para o milionário é uma forma de, afirmando-se como coacher de Mark, ganhar a reputação dos seus pares e subir na estima da sua mãe. O final foi trágico, Du Pont matou a tiro Dave, rival, fantasma real da sua impotência, que nem os seus milhões puderam sossegar.

Para contar esta relação a três cheia de esqueletos no armário, Miller escolhe um tom distanciado, que parece uma escolha determinada em não violar zonas de sombra. Contudo, progressivamente vai-se revelando como uma indecisão, uma fraqueza. Não sabe, por exemplo, o que fazer com o nacionalismo e militarismo de Du Pont, com a incógnita que é essa personagem – no sentido de buraco negro, tal como o Peter Sellers de Bem-Vindo Mr. Chance, de Hal Ashby (1979). A performance de Carrel parece sofrer da mesma dificuldade de ponto de vista, está imobilizada num colete de forças, e demasiadas vezes, o que é devastador para o filme, a personagem causa no espectador a impressão de figura burlesca.

A relação de Map to the Stars, de David Cronenberg, com o humor, é absolutamente cínica. E sempre a abrir, como um sketch atrás de outro sketch. Eis um filme, um pesadelo hollywoodiano como os que constituem o universo de Bruce Wagner, autor que é o argumentista do filme, povoado pelas suas personagens, pelos seus actores (Julianne Moore, John Cusack, Mia Wasikowska, Robert Pattinson…), mas também por todo o name dropping que é listado em cada diálogo e ainda por todos os outros filmes-pesadelos sobre Hollywood de que nos podemos lembrar, com esse grande sonho à cabeça que é o Mulholland Drive de Lynch.

E ainda tem Carrie Fisher como herself.

Isto para dizer que a assemblage de Map to the Stars (competição) é desagradavelmente ruminante, já vimos tudo isto, estas movie stars no crepúsculo, estes actores-criança ditadores, as drogas, as reabilitações, as famílias disfuncionais e todos a começarem a sonhar o mesmo sonho, num filme ou numa sitcom anterior qualquer. Map to the Stars cheira a package por todos os lados, há quem se pergunte (mas foi uma reacção estranha em Cannes: gente a sair da sessão anunciando um dos piores Cronenberg, outros a confessarem que se divertiram) se estará o realizador canadiano a apontar para o público adolescente, a fazer o seu teen movie. Será o seu Scary Movie, porque afinal compila os sonhos e pesadelos dos outros.

Tudo nos conformes com The Homesman, de Tommy Lee Jones (concurso). Quer dizer, um filme sem uma ponta de surpresa. Um western, com Tommy Lee a fazer a sua personagem do costume, alguém colocando de forma silenciosa entre a violência e o burlesco, fazendo-se acompanhar por Hillary Swank numa travessia do Oeste, levando os dois na carroça um grupo de mulheres loucas. É um par improvável, mas é o par improvável como rotina - televisiva. Não faz sentido também alinhar pela facilidade de cantar o suposto feminismo do filme como coisa nova (porque Swank é uma mulher que procura cowboy para se casar?). Basta recordar a improvável reunião entre Clint Eastwood e Shirley MacLaine no Two Mules for Sister Sara (1970), de Don Siegel.

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