A sociedade sem memória

Estamos a construir uma sociedade sem memória. Quando se questiona alguém sobre o seu passado, ouvimos dizer: “Não me interessa, quero viver um dia de cada vez.” Numa família, quando perguntamos pela sua história ou nos interrogamos sobre os valores que conferiram a sua singularidade, respondem-nos: “Sei lá, não quero saber dos outros tempos, quero viver o presente.” Figuras importantes da História de Portugal dizem muito pouco aos jovens de hoje, ou então a sua localização temporal sofre desvio de centenas de anos. Os relatos do passado, trazidos ao quotidiano pelos avós — os historiadores da família — são considerados inúteis, maçadores ou resultantes das confusões do envelhecimento. A leitura, essencial no treino da memória, está cada vez mais afastada dos hábitos quotidianos e é raro alguém, numa conversa trivial, citar algum livro marcante, ou reproduzir (com rigor) uma notícia mais distante. No campo médico, os colaboradores mais novos, treinados a escrever tudo no computador, a olhar pouco para os doentes e a privilegiar a cultura do número de consultas em vez da sua qualidade, esquecem com frequência as referências dos pacientes e têm de consultar depressa o seu iPhone ou tablet. Os antigos álbuns de fotografias, outrora motivos de consulta partilhada em conversas intermináveis de várias gerações, desaparecem agora nas arrecadações ou são deitados no lixo sem cerimónias. Tiram-se muitas fotografias, é certo, mas quem as recorda? Depressa colocadas no Facebook e logo aprovadas por dezenas de Likes, são substituídas por outras, que têm o mesmo destino. Quando, uns meses depois, se pergunta por alguma dessas fotos, a resposta é: “Já não me lembro, ‘posto’ lá tanta coisa…”

Falta memória na política. Com algumas excepções, os protagonistas mais marcantes do passado são agora esquecidos, como se verificou mas comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Quem sabe hoje os nomes de todos os primeiros-ministros do Portugal democrático? Quem é capaz de citar, sem hesitações, as grandes decisões dos três antigos Presidentes? Para isto, muito tem contribuído a falta de credibilidade de muitos dos que nos governaram, porque são os primeiros a querer apagar o que prometeram, pelo simples facto de terem faltado à palavra.

O ensino é um exemplo desta sociedade sem memória. A História resume-se à preparação de testes, com uma “matriz” divulgada com antecedência. Os poucos conhecimentos adquiridos para os exames são depressa esquecidos, sem que haja cuidado em que os estudantes compreendam os grandes movimentos sociais. A calculadora, introduzida demasiado cedo e sem critério — nisto, o ministro Crato tem razão! — faz com que muitos alunos sejam incapazes de executar, de cor, uma simples conta. A maravilhosa epopeia dos Lusíadas — que eu recitava de cor, no Pedro Nunes, com o estímulo da minha professora Maria Arminda Zaluar Nunes — está reduzida a umas fichas de leitura de preparação para o exame do 9.º ano. 

Mais do que tudo: perdeu-se a tradição oral, que fazia procurar reter a pequena estória e incitava à pesquisa em livros e enciclopédias. Agora, é tudo muito rápido e está no telemóvel, para quê o esforço?
A selecção que a memória faz, todavia, é que nos torna felizes: recalcando o que fez sofrer e recordando o que nos alegrou. São os trilhos do passado que indicam o caminho.

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