Há uma crise no The New York Times?

O despedimento da directora Jill Abramson e a divulgação de um relatório sobre a estratégia digital do diário de referência norte-americano deixam no ar a ideia de uma redacção em tumulto.

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O despedimento abrupto da primeira mulher directora do New York Times surpreendeu a própria redacção do jornal REUTERS/The New York Times
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Dean Baquet, o sucessor de Jill Abramson, é o primeiro director negro na história do Times Doug Mills/AFP

Depois da surpresa, choque e controvérsia causados pelo despedimento da directora do The New York Times Jill Abramson, a divulgação de um relatório interno onde se aponta a “perda da vantagem competitiva” do diário nova-iorquino no panorama digital veio reforçar a ideia de crise no jornal que é considerado como a grande referência jornalística dos Estados Unidos.

O relatório interno sobre a estratégia para a transição digital, intitulado “Inovação”, chegou às mãos do site BuzzFeed, e imediatamente acrescentou uma nova faceta à discussão sobre o “tumulto” no The New York Times (NYT). O documento de 96 páginas foi preparado por um painel de oito especialistas liderado por A.G. Sulzberger, filho do publisher do New York Times e herdeiro da família que detém o título desde 1896: o retrato traçado é de uma redacção fragilizada perante os seus concorrentes digitais e constrangida pelo peso da tradição do jornal.

Segundo o relatório, finalizado em Março, o compromisso e prioridade editorial atribuída ao jornal em papel é precisamente um dos entraves à expansão digital do jornal: “Os hábitos e tradições que se foram construindo ao longo de mais de um século e meio de produção do jornal são forças poderosas e conservadoras nesta etapa de transição para o digital – e nenhuma exerce maior força gravitacional do que a primeira página do jornal”.

“A redacção é unânime: estamos a despender demasiado tempo e energia com a primeira página”, conclui o mesmo documento. Os autores elogiam o prestígio e qualidade jornalística do New York Times, mas consideram que o jornal está a falhar na “arte e ciência de levar o nosso jornalismo até aos leitores. Sempre nos preocupámos com o alcance e o impacto do nosso trabalho, mas ainda não fomos capazes de quebrar o código da era digital”, lê-se.

Comparando com novos meios digitais de sucesso nos Estados Unidos – nomeadamente o BuzzFeed, Huffington Post, Business Insider, First Look Media e o novíssimo Vox –, a estrutura do NYT revela-se demasiado pesada e até obsoleta. “Não nos mexemos com a mesma urgência”, critica o relatório, que nota que os concorrentes “estão à nossa frente em termos da construção de impressionantes sistemas de suporte para jornalistas digitais e essa diferença vai acentuar-se ainda mais se não melhorarmos rapidamente as nossas capacidades”.

“O New York Times ganha no jornalismo. Mas a nossa vantagem jornalística diminui à medida que os novos meios digitais expandem as suas redacções”, prossegue o relatório, que elogia a competência dos seus jornalistas mas lamenta as dificuldades em recrutar novos talentos e em atrair nomes que se destacam na blogosfera ou noutros meios digitais.

Uma grande parte do relatório dedica-se à análise de questões burocráticas ou tecnológicas, como por exemplo a optimização de sistemas informáticos, a arquitectura das aplicações produzidas ou lançadas pela “marca”, e muitas páginas têm a ver com aspectos de promoção, potencialmente mais polémicos no que diz respeito ao esbatimento das divisões entre os departamentos editoriais e de marketing.

O documento também alerta para uma tendência que não é exclusiva do NYT e se manifesta em quase todos os jornais que se transpuseram para a internet: o declínio do tráfego para a homepage (página principal), que caiu para metade nos últimos dois anos, e a diminuição do tempo que cada utilizador perde a navegar no site. O fenómeno tem a ver com a mudança do comportamento dos leitores online, que já não acedem às notícias através do “menu” oferecido pelo jornal mas antes numa cadeia orientada de partilhas através das redes sociais – acrescentando uma nova complexidade ao trabalho editorial e dificultando a estratégia comercial da “paywall” para o acesso aos conteúdos.

Segundo diz o relatório, apenas um terço dos 13,5 milhões de leitores do jornal online visitam a homepage. No entanto, nesse número impressionante de leitores apenas se encontram 799 mil subscritores da edição online (que garante acesso a todo o conteúdo do jornal). Na apresentação de contas relativas ao primeiro trimestre, a companhia NYT admitiu uma nova quebra da circulação em papel (apesar de as receitas publicitárias terem aumentado 3,7%). As contas também mostram que, apesar do investimento no digital, 75% das receitas do diário provêm da edição em papel.
 

Saída abrupta
A coincidência da divulgação do relatório e do despedimento inesperado de Jill Abramson, na quarta-feira, alimentou as especulações sobre um eventual “castigo” da directora pelas dificuldades do diário em afirmar-se como o “campeão” do jornalismo digital. Os contornos da saída de Abramson, a primeira mulher a dirigir o jornal nos seus 163 anos de existência, permanecem por explicar. A imprensa americana tem apontado um desentendimento da directora com a administração, que alegadamente lhe pagava menos do que ao seu antecessor Bill Keller; e um prolongado braço-de-ferro com a redacção, que reagiu mal à sua política de contratações e ao seu feitio polarizador e autoritário, como as causas para o seu afastamento abrupto.

Abramson, que assumiu o cargo há três anos, a convite do mesmo homem que a despediu esta semana, o publisher Arthur Sulzberger Jr., manteve-se em silêncio até agora. No sábado, Sulzberger, que inicialmente justificou a sua decisão com "um desentendimento sobre gestão da redacção", caracterizou como "persistentes, mas incorrectas" as notícias que identificam a directora como uma vítima do sexismo e da discriminação que persiste na sociedade americana e se manifesta na desigualdade de tratamento (e pagamento) de homens e mulheres em cargos idênticos.

Em comunicado, Sulzberger garantiu que as questões salariais não tiveram nada a ver com a sua decisão de despedir Abramson e identificou o estilo de liderança da ex-directora como o principal motivo que terá desagradado aos administradores do jornal, concretamente "decisões arbitrárias, o facto de não consultar ou envolver os outros elementos da direcção editorial, falhas de comunicação e o tratamento negativo de colegas em público".

O publisher disse que "o desfecho mais lamentável" da sua decisão de afastar Abramson é o facto de o caso estar a ser retratado como um exemplo do tratamento desigual de mulheres no local de trabalho. Sulzberger notou que Abramson ganhava mais 10% que o seu antecessor. A revista New Yorker confirmou que o pacote de remuneração (salário e benefícios) de Abramson em 2013 era maior do que o de Bill Keller, mas notou que o seu salário anual no primeiro ano como directora era menor (475 mil dólares vs. 559 mil dólares) e que só depois de confrontar a administração do jornal é que foi aumentada. Ainda assim, o valor do seu salário, 525 mil dólares, continuava a ser mais baixo do que o de Bill Keller, razão porque Abramson – que, segundo a New Yorker, teve uma relação tensa com Sulzberger praticamente desde que assumiu a direcção do Times – contratou um advogado para pressionar a administração, o que, diz a New Yorker, pode ter sido a gota de água que levou à sua saída forçada. Uma porta-voz do Times, Eileen Murphy, confirmou à revista que "esse incidente contribuiu" para o despedimento porque "fazia parte de um padrão de comportamento".

Mas a New Yorker nota que a história do Times está repleta de directores difíceis e duros, todos homens, a quem não foi mostrada a porta de saída. Citando um repórter da casa, não identificado: "Foram sempre sociópatas e lunáticos que estiveram à frente deste jornal. Porquê bater o pé à Jill?"

Jill Abramson foi substituída pelo seu número dois, Dean Baquet, 57 anos, um repórter premiado com o Pulitzer, que se tornou no primeiro director negro do New York Times.

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