Sorrir, apesar do desemprego

O PÚBLICO reencontrou três das quatro famílias que acompanhou durante dois anos da crise. O trabalho precário e intermitente persegue Sandra, as filhas de Clara e José emigraram e Adriana desistiu da agricultura, o seu sonho.

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Clara Moura e José Lourenço vivem em Coimbra Adriano Miranda

Sandra Fonseca, sorri, apesar do desemprego lhe ter voltado a bater à porta. “Tem de vir conhecer a minha casa”, diz, lembrando que o filho, de 14 anos, ganhou direito à privacidade: “tem um quarto só para ele”. Para trás, ficou a romântica história de um amor e uma cabana, que acabou em violência doméstica.

A última vez que o PÚBLICO falou com Sandra, há cerca de dois anos, foi através de um telefonema a pedir ajuda: “O Luciano [ex-companheiro] pôs-me fora de casa”, disse. A relação chegara ao fim, e não tinha onde ficar. Os serviços de Apoio à Vítima e a câmara de Faro, na altura, intervieram – recebeu alojamento temporário numa pensão, depois na Santa Casa da Misericórdia de Albufeira.

Por sua iniciativa, encontrou emprego numa unidade hoteleira da zona turística, mas regressou a Faro ao fim de alguns meses para trabalhar num lar de idosos. Alugou quarto e reconquistou a independência. No passado mês de Dezembro, ao fim de ano e meio de contratos a prazo, foi dispensada. “Tinham-me avisado, desde o início, de que não punham ninguém no quadro”, justifica.

O regresso ao desemprego – situação que conhece desde há cerca de três anos, altura em que deixou o snack-bar que geria – foi aproveitado para frequentar um curso de formação profissional em geriatria, aperfeiçoando os conhecimentos que já possuía nesta área. Na semana passada, colocou um anúncio no Facebook a informar que presta serviços de apoio a idosos ao domicílio. “Já tive muitos like, mas ainda não tenho clientes”, disse.

A vida profissional e emocional de Sandra Fonseca segue em altos e baixos como as marés do mar que a rodeia. Mas não é mulher para desistir.

“Tem uma grande força de vencer”. Quem o diz é Luciano, deixando transparecer um lamento por ter perdido a companheira. Viviam numa barraca, com chapas de cinzo, às portas de Faro, faltava o dinheiro para o essencial, mas aparentavam estar unidos pela paixão. Ele, desempregado, beneficia de uma pensão de invalidez, de pouco mais de 200 euros, por ter perdido uma perna num acidente de viação. “Ainda nos encontramos, tomamos café, somos amigos”, conta, evitando falar nos motivos que levaram à separação.

Desde há oito meses, o coração de Sandra abriu um postigo para uma nova relação. Com o actual companheiro, vive num casa de campo em Mar e Guerra, a meia dúzia de quilómetros da cidade, rodeada de laranjeiras, com um enorme terraço. “O meu filho, aqui, tem um quarto só para ele. Quando estava no outro lado [na barraca] tinha um pano a servir de parede, numa divisão única”.

A esta boa nova fase da vida, Sandra gostaria de juntar o que ainda lhe falta. “Só me falta mesmo é trabalho”, sublinha.

Sandra Fonseca, que é originária de uma família do Porto e foi viver para Faro há cerca de duas décadas, testemunha hoje a outra face dos anos da crise, que afectou os filhos e está agora a chegar aos pais. A mãe, que também trabalha na área da geriatria, e o pai, mecânico, estão a passar por grandes dificuldades.

“Os meus pais estão em vias de ter que entregar a casa ao banco – pagam mais de 800 euros de prestação por mês, e como o meu pai sofreu um grande corte no salário, não se estão a aguentar – gostaria de os poder ajudar, mas não posso.”

Foi neste apartamento T2, situado perto do campus universitário da Penha, e agora em risco, que se recolheu, aos 29 anos, por altura do fim de uma relação amorosa. Para sobreviver, fez limpezas na Universidade do Algarve e nos luxuosos empreendimentos turísticos de Vale do Lobo e Quinta do Lago.

Luciano, ex-emigrante nos Estados Unidos, entrou então na sua vida, quase por acaso. “Uma espécie de terapia”, diz, a lembrar os primeiros encontros no café, quando falavam de motos e da liberdade que representava viajar, de cabelos ao vento, em cima de duas rodas. Da paixão pelas motorizadas até à decisão de irem viver juntos foi a distância de um clique. Um dia, o amor derrapou numa curva da vida. Ficou a amizade.

Entretanto, um novo companheiro apareceu e Sandra voltou a sorrir, ainda que desempregada. “O dinheiro não é tudo, mas dava-me jeito ter trabalho e poder pagar as minhas próprias contas”, remata. 

Clara e José: “Ninguém consegue sentir raiva o tempo todo”
Na sala onde também prepara as aulas, no centro de Coimbra, Clara Moura hesita, à procura da palavra certa. Está mais serena do que há três anos, apesar de não ter recuperado a qualidade de vida que possuía em 2010 e nem sequer a esperança de que isso venha acontecer. Mas recusa-se a falar em “conformismo” ou a ver-se como uma pessoa “instalada”, “resignada” ou “apática” em relação à realidade, que continua a preocupá-la. Chumbadas todas as hipóteses, conclui que “talvez”, se tenha, simplesmente, “cansado”: “Ninguém consegue viver com raiva o tempo todo, acho que é isso…”, arrisca.

Professores no topo da carreira, ambos funcionários públicos, agora com 61 e 60 anos de idade, Clara e o marido, José Vieira Lourenço, foram atingidos de chofre pelas primeiras medidas de austeridade. Não escaparam aos aumentos do IVA, como todos os outros, e sentiram os cortes a dobrar: primeiro nos respectivos vencimentos e depois nos subsídios de Natal e de férias, que de uma penada fizeram com que por ano entrassem “menos quatro ordenados” naquela casa. Isso num tempo em que a filha mais nova, Inês, ainda vivia com eles, embora já ensaiasse os primeiros voos que a levaram a sair definitivamente da “casinha dos pais”, como dizia, numa alusão à música dos “Deolinda”, um dos hinos da “geração à rasca”.

Nessa altura, sim, o casal reagiu com “raiva”, como diz agora Clara. Mas uma raiva muito temperada pela consciência de que havia pessoas em muito piores circunstâncias, o que os levava a queixarem-se da sua própria vida com pudor e a incluir nas manifestações de protesto os mais desprotegidos.

Na prática o que é que mudou, nessa fase? Em casa passaram a entrar menos livros e CD’s, e mais cupões de descontos e produtos de marca branca. A rotina de jantar fora e ir ao cinema transformou-se num luxo e as roupas compradas para anunciar a mudança de estação uma raridade. As férias de duas semanas na praia foram reduzidas para metade, Clara passou a pintar o cabelo em casa, José deixou de comprar o jornal desportivo. Já o plano de fazer uma horta ficou pelo caminho, embora o vaso com salsa e outras ervas de cheiro resista na varanda, para amostra de uma fase em que aproveitavam a visita à família, numa zona rural, para trazer legumes oferecidos e, assim, pouparem alguns trocos.

Os hábitos de poupança mantêm-se, mas Clara e José admitem que não só não pensam tanto neles como abrem excepções, como foi a recente viagem ao Brasil para visitar a filha, que entretanto engrossou o contingente de jovens emigrantes portugueses qualificados. O facto de Inês e da irmã mais velha, Sofia, estarem bem, uma em São Paulo outra na Dinamarca, foi um factor de pacificação, dizem. Também se suavizou “aquela sensação de que nada era certo e seguro” e de que “o que de manhã era verdade à tarde era mentira”, como se queixavam, há dois e três anos.

José, que deixou de dar aulas de Filosofia e integrou a primeira linha da Associação de Pensionistas e Reformados (APRE), pode num minuto fazer uma longa lista de críticas às políticas nacionais e assegura que resiste com firmeza às estratégias de manipulação que o querem fazer crer que a saída da troika é motivo de grande regozijo. Ainda assim, diz, a sorrir, não deixa de sentir algum alívio. Não que tenha esperança de que as coisas mudem para melhor de um momento para o outro, que não tem. “Mas já não há aquela sensação de que estão a piorar todos os dias”, diz.  
 
Uma “vida normal” em vez do sonho
Adriana Dimas, a mulher que tinha sonhado viver da agricultura, produzindo o mais variado tipo de hortícolas para uma clientela certa, em lojas e superfícies comerciais, sobreviveu à perda do seu investimento, em 2011. Foi, para ela, uma “descida aos infernos”. Mudou de vida e adaptou-se às circunstâncias de uma crise que lhe cortou os sonhos.

Desmontou as estruturas de duas estufas que tinha comprado no Brejão, Odemira, daquelas deixadas pelo empresário belga Thierry Roussell, e que levara para os arredores de Beja. Já não produzem couves, cenouras nem alfaces. Arrumou-as a um canto até que, superadas as dificuldades, voltassem a ter uso.

Passou a servir à mesa em restaurantes e a ter que fazer o pão que comia. Por essa altura, o seu então companheiro, camionista de longo curso, tentava viver com salários em atraso. Quase sempre em situações-limite, Adriana enviava-lhe as suas poupanças, para poder comprar alimentos.

Quando o PÚBLICO entrevistou Adriana Dimas pela última vez, em Março de 2012, já trabalhava numa empresa de turismo rural nos arredores de Beja, executando as mais diversas tarefas, mas era sobretudo o regresso às culturas de hortícolas que a motivava. Era, dizia, o seu sonho de criança.

E foi assim que aos 48 anos foi buscar as estufas e remontou-as nos terrenos do proprietário da empresa de turismo rural. O último momento de reportagem regista Adriana Dimas a dirigir a instalação das estruturas metálicas para iniciar o cultivo das plantas.

A vida da agricultora deu entretanto mais uma volta. Mudou-se recentemente para outra empresa de agro-turismo em Ferreira do Alentejo. “A agricultura está posta de parte”, adiantou ao PÚBLICO Adriana Dimas, frisando que deixou o anterior emprego “para ganhar mais uns tostões” mas sem qualquer crispação ou desavença com os anteriores patrões.
“Dei a volta por cima e agora tenho uma vida normal” confessa. A crise deixou de ser um pesadelo, embora lhe tenha roubado algum fulgor. “Batalhei muito”, garante Adriana, para hoje ter “uma vida normal”.

Vive sozinha, é lacónica em mais explicações. Adianta apenas que está a pensar escrever um livro sobre a sua vida.

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