Somos raparigas, somos negras!, diz Céline Sciamma, que é branca

Abertura eufórica da Quinzena dos Realizadores com Bande de Filles. O corpo delas a falar pela banlieue.

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As actrizes do filme Bande des Filles Karidja Toure, Marietou Toure, Assa Sylla e Lindsay Karamoh AFP PHOTO / LOIC VENANCE
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As actrizes Rosario Dawson (esq.) e Mireille Enos do filme Captive, de Atom Egoyan REUTERS/Yves Herman
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O realizador Atom Egoyan (no meio), e os actores Rosario Dawson, Ryan Reynolds e Mireille Eno REUTERS/Benoit Tessier

Somos raparigas, somos negras!, Céline Sciamma faz a sua declaração no palco da Quinzena dos Realizadores. Mas ela não é negra, ela é branca, uma francesa da classe média e com longínquas origens italianas.

No perfil que dela traçou o Le Monde, Céline é colocada no limite do normcore, essa espécie de fashion statement (ou é apenas uma piada?) que pugna pela diluição na invisibilidade. To fit in em vez de stand out. Um pós-qualquer coisa…

Céline não é negra, mas as personagens do seu filme, Bande de Filles, e as suas exuberantes actrizes, que subiram com ela ao palco na sessão de abertura da secção Quinzena dos Realizadores, são. Mas Céline faz corpo com o bando, tudo nos seus filmes participa de uma forma de ligação sensual ao grupo, quer seja em La Naissance des Pieuvres (2009), em que o desejo homossexual irrompia no seio de uma equipa de natação sincronizada, ou em Tomboy (2013), história de uma menina que se fazia passar por rapaz durante um Verão para pertencer ao bando de miúdos do bairro.

Tem sido assim na vida de Céline, das manifestações à forma como participa como consultora dos argumentos dos amigos realizadores passando pela equipa de futebol feminino que criou com as amigas (e em que participa Marie Amachoukeli, uma das realizadoras de Party Girl, o filme que abriu a secção Un Certain Regard).

Céline diz sentir um élan forte por “essa forma de encarnação muito física do político”. Se há élan em Bande de Filles está aí, precisamente, na evidência dos corpos, na forma como falam. Esta é a história do desabrochar de uma adolescente de um bairro da periferia parisiense – pai ausente, mãe afogada pela necessidade de trazer dinheiro para casa, irmã mais pequena para cuidar, irmão com a missão de velar pela respeitabilidade familiar, o que o torna às vezes alguém activo em tornar o ambiente caseiro disfuncional. Até que Marieme encontra três bad girls vestidas pelo rock’n’roll e desfrisadas pelo R’n’B e que lhe propõem uma viagem até ao centro, Paris. A viagem vai mudar tudo, até o nome de Marieme, que se passará a chamar Vic, de Victory.

E assim é como se La Haine, de Mathieu Kassovitz, filme que explodiu aqui em Cannes há quase duas décadas, fosse fosse actualizado pelo romantismo que está na origem da metamorfose das mulheres dos filmes de Jane Campion. Num cenário, a banlieue parisiense, que participa da realidade mas que a ultrapassa, fazendo dele uma tela em branco onde é possível investir com uma arquitectura de cores e sensualidade. Um pós-qualquer coisa também, depois dos filmes sobre a banlieue com rapazes, um filme na banlieue com raparigas. Não é só o género que muda, há qualquer coisa da ordem da superação na forma de juntar os temas do costume para falar da banlieue: o corpo delas a tomar posse de Diamonds, de Rihanna, é assim que o filme fala.

Diz-se que Céline Sciamma é das mais enérgicas realizadoras da sua geração, começa a estar em todo o lado e neste momento está a escrever o argumento do próximo filme de André Téchiné. A recepção a Bande de Filles na abertura da Quinzena foi empática e física. Estes devem ser momentos intensos para um cineasta. Mas a experiência da euforia é sempre triste, porque traz consigo um sabor a fim. Apesar da exuberância à flor da pele (ou se calhar por causa dela), Bande de Filles é um filme que não consegue prometer que vai ficar connosco para todo o sempre.

Essa foi uma experiência de empatia, de euforia – condenadas que possam estar. Captive, de Atom Egoyan (concurso), é qualquer coisa próxima do grotesco. Alguém diz no filme, uma personagem a outra, quando esta desenvolve uma teoria qualquer sobre um rapto, que ela andou a ver muitos filmes. Atom Egoyan andou a ver muitas séries de televisão, dessas que normalizam o vírus Twin Peaks dentro delas.

No papel, um projecto que promete: examinar como o passado (um rapto) marca ao longo de vários anos a vida de várias personagens, dos pais da vítima ao casal de investigadores encarregados do caso, passando pela própria vítima e pelo seu raptor. O passado e o trauma são um tema de Egoyan, como a violação da privacidade, como o voyeurismo… Tudo isto está aqui, mas com a velocidade das rotinas, com a convicção apenas do plot e de como levá-lo até ao fim – e o fim, em que o filme parece apodrecer a sua própria rotina, é mesmo a desagregação de todas as hipóteses de poder ser convencido (experiencia, pelo menos, este espectador).

                                                                             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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