Ecografias emocionais: aqui não lhe chamam feto, é a bebé Leonor

Esta sala de ecografias é diferente das habituais: entram quantos couberem, há um plasma na parede e um sofá que podia ser de uma sala de estar de uma casa. Ali são permitidos todo o tipo de palpites sobre como será “a bebé”.

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Disseram-lhes algo como “está tudo bem com o feto”. Claro que foi muito importante para os futuros pais, Inês Domingos e João Pereira, saberem que a gravidez está a correr bem, que “o feto está bem”, mas saíram das duas ecografias obstétricas desconsolados. Os exames não demoraram mais de dez minutos e para casa levavam “uns papelitos” com o que lhes parecia ser “uns riscos” que tentaram, em vão, interpretar: seria aquele risco uma perna ou um braço?

Aqui não, aqui chamam ao feto bebé ou Leonor, falam-lhes de “pernocas” do bebé em vez de medições de fémur, de cabecinha em vez de perímetro cefálico. Para casa levam um pacote de 120 “fotografias” da Leonor nas mais variadíssimas posições, a sorrir, bocejar, com o dedo na boca. Antes de saírem, têm direito a uma selecção das melhores imagens da sessão que é enviada imediatamente para um conjunto de emails que ditam à recepcionista do Centro Ecox 4D Pré-Natal. Não sem antes escolherem, de entre uma infinitude de tipos de letra, no texto que acompanhará as imagens que seguirão para familiares e amigos: “Leonor, cada vez mais perto.” Mensagem enviada.

Margarida Parreira é mãe de três filhos. Na clínica onde foi seguida a sua gravidez não havia ecografias a três dimensões (3D) nem a quatro dimensões (que juntam à tridimensionalidade o movimento), nem gravações vídeo. Levou apenas para casa umas imagens a duas dimensões a preto e  branco, lembra. Foi por isso que quando andava à procura de uma empresa para abrir em sistema de franchising descobriu este conceito, os chamados centros de ecografias emocionais. Na altura, lembra-se de ter pensado “é mesmo isto — fazia todo o sentido, se houvesse no meu tempo eu tinha feito”. Em Espanha o primeiro centro da marca ECoX 4D Pré-Natal nasceu em 2007, em Alicante. Naquele país abriram mais 20 entretanto. Em Portugal, Margarida Parreira abriu o primeiro, em Lisboa, em Setembro do ano passado, o segundo abriu no início deste ano em Leiria, em conjunto fizeram cerca de 900 ecografias, diz a responsável. Aqui quem faz as ecografias não são médicos, são técnicas que recebem um mês de formação em Espanha, onde aprendem a manusear o ecógrafo de modo a tirar as melhores imagens, a saber identificar o que os pais estão a ver no ecrã, a saber falar com os pais de modo a criar um momento especial, que é pago a um mínimo de 79 euros por sessão, mas pode ir até aos 150 euros (no caso de gémeos).

“Os médicos estão focados no seu trabalho, centram-se no diagnóstico. Têm uma responsabilidade brutal nas mãos, a de saber se o bebé está bem. Cá estamos nós para o resto”, explica a proprietária do centro de Lisboa. “É uma abordagem completamente diferente das ecografias”. Inês Domingos, de 24 anos, e João Pereira, de 26 anos, vão ser pais pela primeira vez. Para a avó, Paula Leite, de 49 anos, esta é a primeira neta. Fizeram as ecografias médicas que havia a fazer, a do primeiro trimestre, sobretudo vocacionada para a despistagem da síndrome de Down, a do segundo trimestre, o estudo morfológico no qual cada órgão é escrutinado — cérebro, face e pescoço, coração, pulmões, intestino, rins, coluna vertebral. Mais lá para a frente irão fazer a última, que avalia o “bem-estar fetal”. São as três obrigatórias e comparticipadas pelo Serviço Nacional de Saúde.

Estes futuros pais fizeram as ecografias médicas em clínicas particulares mas com seguro de saúde, não foram além dos 10 minutos, não puderam gravar. “Ficámos tristes. Há pessoas que têm o vídeo e nós não tínhamos... há centros com 3D. Nós nem 3D, nem vídeo, viemos com uns papelinhos”. Quanto ao médico, esteve calado o tempo todo, enquanto escrevia o relatório disse-lhes de fugida que estava tudo bem.

Como têm seguro de saúde, pagaram por cada ecografia médica 10 euros, ali a primeira ecografia emocional custou-lhes 79 euros, valor que estão a pagar segunda vez para ver a bebé já maior, agora às 27 semanas (por volta dos sete meses). “Em vez de ir comprar uns ténis preferimos vir vê-la”, diz a grávida. Da primeira que fizeram uma ecografia emocional foi ainda às 19 semanas, ainda antes da ecografia médica de estudo morfológico. A avó veio sempre, mas “pode vir quem quiser”. Já tiveram uma ecografia emocional com a sala com 18 pessoas, entre pais familiares e amigos, conta Margarida. É essa uma das grandes mais-valias deste centro, defende, “a gravidez é sobretudo sentida por quem carrega o bebé, e lhe sente os movimentos, pai e familiares são mais espectadores, aqui todos são envolvidos”.

A sala é espaçosa, os sofás laranja são confortáveis e fofos, bem podiam ser de uma sala de estar. A imagem da bebé que se vê no ecrã do ecógrafo é também projectada em ponto grande num plasma em frente ao sofá, um holofote irradia uma luz cor-de-rosa que se reflecte na parede porque é de uma menina de que se trata.

E começa então a ecografia emocional: “Olha a boquinha dela, tão gira”, diz a avó quase colada ao ecrã. “Ai um bocejo”, legenda a técnica com ar dengoso; “ai tanto sono”, responde, por seu lado, a mãe. “E abriu um olho, olha o sorriso. Tem ar bem-disposto”, continua a técnica. “Lá dentro é bem-disposta, cá fora vamos ver”, diz o “papá”.

“Olha a cara dela, espectacular. Essa dá uma foto linda”, sugere a avó. “O meu dedo não pára de tirar fotos”, diz a técnica e proprietária do centro. “Aquela batatinha é do meu lado”, diz a mãe, “tem os dedos grandes, são meus, tu tens uns amendoins”, responde o pai e riem-se os dois, ele com um braço enlaçado em Inês. Agora é a altura de lhe ouvir os batimentos do coração que calam temporariamente a música de fundo, o Let it be dos Beatles tocada em xilofone, versão de embalar. Dependendo da sessão escolhida, este tipo de ecografia pode ir até uma hora.

O obstetra António Inocêncio sorri quando lhe falam de detectar semelhanças com os pais através de ecografias 3D. Responsável pela área das ecografias obstétricas do colégio de especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos, desafia qualquer pai a reconhecer o seu filho se lhe puserem 30 imagens de ecografias tridimensionais à frente. “São todos parecidos”, até porque, em rigor, não são fotografias. A ecografia funciona por sistema de ultra-sons que batem na face e corpo do bebé,  o que se vê são contornos reconstruídos pelo software, “quase como se fosse uma máscara de cera. Dizer que é a cara do bebé é uma fantasia.”

Mas o mais importante “é advertir os utentes de que aquela não é uma ecografia médica. Que o bebé pode ter uma face linda e ter um coração e cérebro alterados”. O centro EcoX 4D diz que se podem fazer ecografias emocionais a partir das 16 a 17 semanas mas a ecografia médica para avaliar se os órgãos internos e externos estão bem, é recomendada pelos obstetras a partir das 18 e 22 semanas, explica António Inocêncio. Ou seja, pode-se estar a fazer uma ecografia emocional antes de o médico ter dito que está tudo bem naquela fase da gravidez.

A esse propósito, Margarida Parreira mostra o consentimento informado que os pais têm que assinar, onde se lê que estas ecografias não têm “fins diagnósticos”, “que não substituem nenhuma das obrigatórias”, “o seu único objectivo é a obtenção de uma reportagem gráfica em suporte digital”.

Margarida sabe que, por mais que tentem separar os dois mundos, o da medicina, com o serviço emocional que fornecem neste centro, eles tocam-se. As técnicas estão proibidas de fazer qualquer interpretação clínica das imagem mas em Espanha, onde o número de ecografias emocionais realizadas é já muito grande, já detectaram um bebé cujo coração não batia, aconselharam a grávida a ir ao seu médico, noutro caso não havia afinal gestação apesar de a mulher teimar em querer ver o bebé no ecrã.

“Uma patetice”
Luís Graça, director do Serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, acha o conceito “uma patetice”. “Estou conformado com essas coisas, vivemos num mundo liberalizado. Há nichos de mercado”. Mas é preciso que as águas estejam separadas e, perante “o risco de darem palpites em termos clínicos”, deve haver “a certeza de que o sapateiro não vá além da chinela”. Que fique bem definido que nada têm a ver com “as ecografias a sério”.

Para Luís Graça, uma ecografia “é um meio complementar de diagnóstico. É a mesma coisa que um raio X ao tórax”, em que “o uso do 3d ou 4d tem um valor diagnóstico próximo do zero”. As três ecografias obrigatórias e que são comparticipadas pelo Serviço Nacional de Saúde são a duas dimensões.

Os médicos não costumam fazer grandes comentários sobre o que se está a ver nas ecografias obstétricas, mas não quer com isso dizer que não mostrem “um mínimo de empatia com a grávida. Há coisas que dão um acerto aconchego”: diz-se que “é um menino”, diz-se “o seu bebé está muito bem”.

A vida medicalizou-se, o que não era do âmbito da medicina, agora é. Nascia-se em casa sem intervenção médica, morria-se em casa sem médicos por perto. O facto de os cuidados médicos pré-natais terem sido alargados trouxe melhorias enormes em termos da descida dos níveis de mortalidade infantil, sublinha a socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Sofia Aboim. “Mas ter um filho é cada vez mais emocional, as pessoas têm cada vez menos filhos, e com isso aumenta a importância da gravidez que às vezes será uma experiência única na vida”. Na sua opinião, o surgimento destes chamados centros de ecografias emocionais parecem-lhe encaixar-se “num movimento de compensação da medicalização, uma reacção à despersonalização da própria medicina, à frieza da prática médica, que não responde em grande medida à necessidade de humanidade e de afecto”. As ecografias obstétricas “são procedimentos médicos feitos em série, muitos médicos estão sobrecarregados e não têm tempo” e percebe-se a cautela de um médico em “não tornar o feto em bebé antes de se saber se tem viabilidade”.

O futuro pai de Leonor mostra no seu IPhone a primeira reportagem fotográfica feita no centro de ecografias emocionais. “Às vezes fazemos anúncios de nascimento daqui, mandamos ‘zooms’ de pilinhas para o amigo céptico que não acreditava que ia ser um rapaz”, explica a proprietária do centro.

Ricardo Antunes, professor de Sociologia da Saúde na Escola Superior de Saúde Egas Moniz, em Almada, olha para este tipo de fenómeno como o reflexo de “uma sociedade de informação” “com necessidade de estar em directo com tudo”, quase em contraste com o que parecer ser “uma perda de capacidade de esperar pelo acontecimento”. Uma sociedade “onde a imagem tem muito valor, onde a sua partilha se banalizou e surge como confirmação. Pensar que antigamente era no dia do parto que se sabia o sexo”.     

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