O que o Irão quer

O Irão não tem interesse em armas nucleares e está convencido de que essas armas não reforçarão a sua segurança. Assim sendo, as actuais negociações sobre a questão nuclear não enfrentam barreiras insuperáveis.

1. A vitória da revolução de 1979, uma sublevação popular, nacional e antimonárquica, com uma mistura de traços republicanos e islâmicos, contribuiu para o estabelecimento de uma nova ordem revolucionária. As repercussões foram drásticas, e a revolução afectou profundamente as relações do país com o estrangeiro, não apenas na vizinhança imediata, mas também em todo o Grande Médio Oriente e resto do mundo.

Qualquer análise objectiva dos atributos únicos do Irão no contexto mais vasto de uma região tumultuosa revelará o potencial significativo do país para desempenhar um papel destacado a nível regional e global. A República Islâmica pode contribuir activamente para restaurar a paz, a segurança e a estabilidade regionais, assumindo um papel catalítico nesta fase de transição actual nas relações internacionais.

(...) O Irão tem-se mantido independente de potências externas e praticado um não-alinhamento genuíno, proporcionando-lhe uma liberdade de acção particular no âmbito da ordem mundial existente. O Irão também pode convocar as suas tradições políticas. Conseguiu, com êxito, estabelecer um modelo de governo democrático nacional, desenvolvendo e mantendo uma rara democracia religiosa no mundo moderno. Tem uma identidade cultural sem paralelo que emana da sua dinâmica harmonia de cultura iraniana e islâmica, que pode ser usada para promover a sua missão e mensagem por todo o mundo islâmico.

Sendo uma sociedade antiga com uma pluralidade de minorias, étnicas, religiosas e linguísticas, o Irão também oferece um modelo de inclusão política. E o país conseguiu tudo isto no centro de uma região geostratégica vital que tem sido testemunha de uma longa história de rivalidades de grandes potências, intervenções de todo o tipo e conflitos militares prolongados.

Por fim, o Irão tem demonstrado as suas potenciais capacidades no campo das ideias e âmbito universal através de iniciativas como o Diálogo entre Civilizações, do (ex-) Presidente Muhammad Khatami, e a recente proposta do Presidente Hassan Rouhani de “um mundo contra a violência e o extremismo”, a qual foi adoptada como resolução pela Assembleia Geral da ONU em Dezembro de 2013.

(...) O Irão tem sido um estado organizado desde a Antiguidade, embora com alguns períodos de interrupção. Subsequentemente, ao longo da História, na guerra e na paz, tem mantido relações estreitas com numerosos vizinhos e até com potências rivais. Tem acumulado uma memória colectiva rica e multifacetada, e tem sido um profundo reservatório de experiências.

2. Com sete países o Irão tem fronteiras, e com 11 partilha o acesso quer ao mar Cáspio, quer ao golfo Pérsico; estes dois recursos de água são importantes para os Estados do litoral, assim como para uma série de potência externas. Deste modo, o Irão enfrenta, inevitavelmente, um grande desafio no que diz respeito à sua segurança nacional e relações externas.

O Irão também se situa numa região fundamentalmente afectada por crises. A ocupação da Palestina que se arrasta há décadas e o conflito persistente que ali se vive têm infligido um ónus destrutivo ao bem-estar e desenvolvimento de todo o Médio Oriente. O tumulto, a instabilidade e a violência crónicos na região agravaram-se nos últimos anos devido a uma série de intervenções militares externas dilatadas no tempo, sobretudo no Afeganistão e no Iraque.

Desde o início de 2011, as revoltas no mundo árabe e as suas consequências geralmente sangrentas – designadas por alguns, nas fases iniciais, como “Primavera Árabe” e por outros como “Despertar Islâmico” – introduziram um outro factor desestabilizador à região. A tendência deverá ser para continuar durante algum tempo, embora a direcção do processo permaneça extremamente incerta.

Tendo em consideração o cenário regional e a dinâmica em curso entre intervenientes locais e externos – acima de tudo, os Estados Unidos –, o Irão tem hoje de fazer face a vários desafios nas suas relações externas. Escusado será dizer que a longa sombra da contenda que ainda dura, desde há décadas, entre o Irão e os EUA, que tem sido muito exacerbada devido ao imbróglio nuclear, complicou ainda mais o estado das relações do Irão com vários vizinhos.

Entretanto, tem havido um ressurgimento recente nas actividades de actores não-estatais, extremistas e violentos, em países como o Afeganistão, o Iraque, o Líbano e a Síria, com um programa clara e inequivocamente anti-Irão e antixiita. Uma campanha bem orquestrada tem promovido uma série de fobias visando o Islão, o Irão e o Xiismo; tem apresentado o Irão, simultaneamente, como ameaça à segurança e à paz regional; alargado o apoio aos que se opõem ao Irão na região; manchado a imagem global do Irão e prejudicado o seu estatuto; armado os rivais regionais do Irão; apoiado activamente forças anti-iranianas, entre elas os taliban e outros grupos extremistas; e fomentado divergências entre o Irão e os seus vizinhos.

3. Foi neste contexto internacional que Rouhani obteve uma vitória decisiva nas eleições presidenciais iranianas, altamente concorridas, em Junho de 2013. Ele obteve 51% de todos os votos na primeira volta, concorrendo contra cinco conservadores. O seu programa político, de moderação prudente e esperança, representou um ponto de viragem significativa. O facto de a afluência ter totalizado 73% sugere que os eleitores ultrapassaram as divisões geradas nas presidenciais de Junho de 2009.

As posições pragmáticas de Rouhani em termos de políticas internas e externas tranquilizaram o eleitorado iraniano. Rouhani lançou uma campanha que se distinguiu dos programas obscuros dos rivais em aspectos-chave: uma análise clara da actual situação iraniana, a sua articulação lúcida e sem ambiguidades dos grandes desafios que enfrentam a sociedade e o Estado; a sua atitude honesta e franca no que toca aos problemas e eventuais soluções.

(...) O programa de política externa de Rouhani baseou-se numa crítica douta, sóbria e de princípios da conduta de relações externas nos oito anos da anterior administração [de Mahmoud Ahmadinejad]. Rouhani prometeu remediar uma realidade inaceitável através de uma transformação completa da política externa. As mudanças que propôs demonstraram uma compreensão realista da ordem internacional contemporânea, dos actuais desafios externos que a República Islâmica enfrenta e do que é necessário para que os laços do Irão com o resto do mundo voltem à normalidade. Rouhani também apelou a um discurso de “moderação prudente”. Esta visão tem como objectivo afastar o Irão do confronto e enveredar pelo caminho diálogo, da interacção construtiva e da compreensão – tudo sem perder de vista a salvaguarda da segurança nacional, elevando o estatuto do Irão, obtendo um desenvolvimento sustentável a longo prazo. (...)

4. Por fim, o compromisso de Rouhani para com um acordo construtivo exige diálogo e interacção com outras nações em pé de igualdade, com respeito mútuo, ao serviço de interesses partilhados. (...) Em primeiro lugar, o Irão pretende expandir e aprofundar as suas relações bilaterais e multilaterais com uma variedade de estados e organizações, incluindo instituições económicas internacionais. (...) Defenderá também os direitos individuais e colectivos dos cidadãos iranianos em toda a parte, e promoverá a cultura iraniano-islâmica, a língua persa, e a democracia islâmica como forma de governo. Em terceiro lugar, o Irão continuará a apoiar as causas dos povos oprimidos em todo o mundo, especialmente na Palestina, e manterá a sua rejeição de princípio às usurpações sionistas no mundo muçulmano.

(...) A maior prioridade é diminuir e pôr fim, definitivamente, à campanha anti-iraniana propagada por Israel e os seus benfeitores americanos, que procuram (...) deslegitimar a República Islâmica, denegrindo-a como uma ameaça à ordem global. O principal veículo para esta campanha é a “crise” relativamente ao programa nuclear pacífico iraniano – uma crise que, do ponto de vista do Irão, foi totalmente fabricada e, portanto, é reversível.

É por isso que Rouhani não perdeu tempo a quebrar o impasse e a iniciar negociações com o chamado P5+1 (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos, mais a Alemanha), para encontrar um campo de consenso e chegar a um acordo que assegure a não-proliferação, preserve os sucessos científicos do Irão, honre os direitos nacionais inalienáveis do Irão no âmbito do Tratado de Não-Proliferação e que ponha fim às sanções injustas que têm sido impostas por poderes estrangeiros.

O Irão não tem interesse em armas nucleares e está convencido de que essas armas não reforçarão a sua segurança. O Irão não tem meios de enveredar por uma dissuasão nuclear – directamente ou por procuração – contra os seus adversários. Mais: o Governo iraniano crê que só a mera percepção de que o Irão procura adquirir armas nucleares é prejudicial para a segurança do país e para o seu papel regional, já que as tentativas do Irão de obter superioridade estratégica no golfo Pérsico provocariam, inevitavelmente, respostas que diminuiriam a vantagem militar convencional do Irão.

5. Assim sendo, as actuais negociações sobre a questão nuclear não enfrentam barreiras insuperáveis. Os únicos requisitos são vontade política e boa-fé para que as negociações “obtenham um sim” e avencem com o Plano Conjunto de Acção adoptado em Genebra em Novembro [de 2013], o qual determina: “Estas negociações visam chegar a uma solução ampla, de longo prazo, de mútuo acordo, que garanta ser exclusivamente para fins pacíficos o programa nuclear do Irão.” (...)

O Irão tentará gerir as suas relações com os Estados Unidos tentando minorar as divergências existentes e prevenir a emergência desnecessária de tensões futuras, deste modo dissipando gradualmente o mal-estar.

O Irão quer cooperar com os países europeus e outros Estados do Ocidente, com vista a revigorar e a alargar ainda mais as relações. Este processo de normalização deve basear-se nos princípios do respeito mútuo e interesse mútuo, e deve abordar questões que preocupam legitimamente ambas as partes. O Irão também quer expandir e consolidar os laços amigáveis com outras potências, como a China, a Índia e a Rússia. Sendo presidente do Movimento Não-Alinhado desde 2005, o Irão quer chegar às potências emergentes do “Sul global” e tentará mobilizar, com responsabilidade, o enorme potencial com que podem contribuir para a prosperidade e paz mundial.

O povo iraniano, ao votar em massa nas presidenciais do ano passado e com a sua escolha decisiva a favor de um compromisso sólido, abriu uma janela de oportunidade, única, para que o novo Governo iraniano e o mundo sigam por uma via diferente e mais prometedora nas relações bilaterais e multilaterais. (...)

Para que este processo seja bem-sucedido, é imperativo que outros Estados aceitem a realidade de que o Irão tem um papel proeminente no Médio Oriente e mais além, e que reconheçam os direitos nacionais, os interesses e as preocupações de segurança do Irão. (...) Os ocidentais, sobretudo os americanos, precisam de modificar o modo como olham para o Irão e o Médio Oriente, e que aprendam a compreender melhor as realidades da região, evitando os erros na análise e na prática do passado. Coragem e liderança são requisitos para aproveitar esta oportunidade histórica, que poderá não se repetir. A oportunidade não deve ser perdida.

Ministro dos Negócios Estrangeiros da República Islâmica do Irão. Este ensaio, do qual seleccionámos alguns excertos por ser muito longo na versão original, teve primeira publicação na prestigiada revista norte-americana Foreign Affairs (Ed. Maio-Junho 2014). Twitter: @JZarif

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