Bem-vindo a Cannes, senhor Ferrara

Nicole Kidman como Grace do Monaco é uma promessa de petit scandale sazonal. Os Dardenne, Egoyan, Mike Leigh, Ken Loach ou Cronenberg são os suspeitos de costume. A coisa que apetece agora é Abel Ferrara e Dominique Strauss-Kahn.

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“Um homem que lida com mil milhões de dólares por dia, que controla o destino económico das nações, um homem que sonhou salvar o mundo mas não pode salvar-se a si mesmo”, segundo a sinopse DR

“Vous savez qui je suis?” Dominique Strauss-Kahn, antigo director do FMI acusado em Maio de 2011 de violar uma empregada de um hotel nova-iorquino? Não é ele a personagem por trás de Mr. Deveraux em Welcome to New York, de Abel Ferrara?

Quem quer que seja, é uma personagem de Abel Ferrara: está em queda. Dominique Strauss-Kahn é de Abel Ferrara. “Um homem que lida com mil milhões de dólares por dia, que controla o destino económico das nações, um homem que sonhou salvar o mundo mas não pode salvar-se a si mesmo”, segundo a sinopse. O trailer de Welcome to New York, que termina com a voz de Gérard Depardieu/Mr. Deveraux (“Vous savez qui je suis?”), esclarece de início: “Este filme é inspirado num processo judicial, que teve as suas fases públicas filmadas, retransmitidas e comentadas pelos media de todo o mundo, mas as personagens do filme e as sequências que os representam na sua vida privada são ficção.”

Ao lado de Gérard Depardieu/Mr. Deveraux/Strauss-Kahn, há Jacqueline Bisset/Simone Deveraux/Anne Sinclair, a mulher (voz exaurida: “c’est un desastre!”). Sábado, dia 17, Depardieu (“the real McCoy”, segundo Ferrara), Bisset e o realizador vão dar uma conferência de imprensa em Cannes a seguir a uma projecção especial no festival, no mesmo dia em que Welcome do New York estará disponível em video on demand. Foi essa a forma que a distribuidora Wild Bunch escolheu para lançar o filme em França, onde as leis impedem a distribuição simultânea online e em sala, que é o que vai acontecer, por exemplo, nos EUA e em outros territórios. Com o online, explicou Vincent Maraval, um dos produtores do filme e co-fundador da Wild Bunch, quer-se chegar ao maior número de espectadores no mais curto espaço de tempo. Veja-se: em França, 4.44 Último Dia na Terra, o filme anterior de Ferrara, fez 20 mil espectadores em sala; mas teve três milhões de visionamentos no YouTube, segundo Maraval. “Isso obriga-nos a reflectir”, acrescentou.

É uma decisão que está a ter consequências. Maraval tem falado das "relações incestuosas" em França entre as elites, os políticos, os media, o que, segundo ele, explica uma resistência em filmar o presente. Welcome to New York  é hoje um filme americano porque ninguém em França quis financiar o projecto. "Em qualquer parte do mundo podem fazer-se filmes como O Caimão de Nanni Moretti sobre Berlusconi ou Fahrenheit 9/11 sobre George Bush. Em França nunca se chega a falar do nosso presente." Mas a questão agora, revela, é que a UGC, importante grupo europeu de distribuição cinematográfica, "tenta impedir a estreia do filme nos ecrãs belgas fazendo pressão sobre os exibidores". O director-geral da UGC, Alain Sussfeld, disse à AFP que "a partir do momento em que uma obra não coloca a sala em prioridade" a UGC não assegura a difusão "em qualquer território que seja."

E eis como a 67ª edição de Cannes acena com uma possibilidade de acontecimento que não é só coisa mediática – como o é Grace de Mónaco, de Olivier Dahan, com Nicole Kidman, o filme que nesta quarta-feira abre o festival e de que a família real monegasca se distancia por considerar que trata uma página da história do principado baseando-se “em referências históricas e literárias erradas e duvidosas” –, o filme, promessa de petit scandale sazonal, “apanha” Grace em 1962, na altura em que Hitchcock convidou a princesa para um comeback como actriz, para filmarem Marnie (papel que seria para Tippi Heddren). Dahan disse ao Journal de Dimanche sentir-se "insultado" pelas declarações dos príncipes e precisa que nunca quis fazer um filme biográfico, que o seu filme não apresenta qualquer revelação em primeira mão e que não há "razão para dramas." "Há acontecimentos reais e outros imaginados, é o meu direito à ficção." E o seu interesse por uma mulher "que inventou a noção da princesa moderna."

Mas apesar destes mimos é com Ferrara que Cannes 2014 nos põe a salivar de expectativa perante o reencontro com um cineasta. É que, e com a possibilidade de surpresas que devem ser generosamente mantidas em aberto, a reunião dos suspeitos do costume na competição tem o sabor da manutenção do património lá de casa: Olivier Assayas, os irmãos Dardenne, Nuri Bilge Ceylan, Atom Egoyan, Mike Leigh, Ken Loach, David Cronenberg, que põe Hollywood e o culto da celebridade a arder em Map to the Stars, até Godard, com Adieu au Langage, a fazer o papel de “contra” de prestígio, ou Xavier Dolan, que foi amamentado por Cannes e que agora, com Mommy, salta das secções paralelas para a competição principal – a ver se a energia de Tom a la Ferme, promessa de o canadiano ter sido atingido pela maturidade, se cumpre. O júri, presidido pela cineasta Jane Campion (Palma de Ouro em Cannes 1993: O Piano, ex-aequo com Adeus Minha Concubina, de Chen Kaige), é composto por Sofia Coppola, Gael García Bernal, Willem Dafoe, Carole Bouquet, Jia Zhangke, a actriz iraniana Leila Hatami, a actriz sul-coreana Jeon Do-yeon e o realizador dinamarquês Nicolas Winding Refn.

Ainda na selecção oficial, mas na secção Un Certain Regard, estão os nomes de Lisandro Alonso, Mathieu Amalric (regresso ao festival depois do jubiloso e triste Tournée), Asia Argento, Pascale Ferran, Ryan Gosling (Lost River, estreia como realizador), Jessica Hausner. André Téchiné (L’Homme qui Amait Trop) ou Zhang Yimou (Coming Home) apresentam-se fora de competição. O projecto Les Ponts de Sarajevo, 13 olhares sobre uma cidade, a guerra, as várias culturas (Godard, Sergei Loznitsa, Ursula Meier, Cristi Puiu ou Teresa Villaverde) é exibido em sessão especial. National Gallery, de Frederick Wiseman, ou Queen and Country, de John Boorman, estão na Quinzena dos Realizadores.

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