Seco que nem um carapau da Nazaré

Os peixes continuam a secar ao sol, indiferentes ao debate em torno deles. São um dos maiores bilhetes-postais da Nazaré, mas as mulheres que os vendem temem que “isto esteja a acabar”. Há, contudo, uma nova geração que acredita neles.

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São sete da tarde e o sol começa a pôr-se sobre a praia da Nazaré. Ana Palmira continua sentada por detrás da sua banca de peixe seco. Não tem grandes esperanças de vender alguma coisa, mas vai ficando, sempre pode ser que ainda passe alguém que queira comprar. 

Passa um casal de jovens. Ele faz perguntas. Ela olha com um ar desconfiado para os peixes escalados e secos. Como é que se cozinha?, pergunta ele. Parece tentado a levar. Ana Palmira ganha algum alento com a perspectiva da venda e garante que é um petisco de primeira. A rapariga abana a cabeça. Acabam por agradecer e ir embora sem levar nada.
“Isto está a acabar”, lamenta-se a peixeira. “Isto” é a venda de peixe seco, uma tradição antiga e um dos bilhetes-postais da Nazaré. São sete da tarde e a banca continua cheia. De nada adianta estar a pé desde as quatro da manhã e já ter corrido a Nazaré, primeiro a comprar o peixe na lota, depois a vendê-lo ainda fresco e por fim a abrir o restante, a passá-lo na salmoura e a pô-lo ao sol. “A malta nova hoje não quer nada disto. Só os mais velhos é que compram, e esses estão a desaparecer.”

Ana Palmira andou toda a vida a vender peixe, conseguiu pôr os filhos a estudar, hoje todos têm cursos superiores e até mestrados, mas, afinal, contra todas as suas expectativas, isso não lhes serviu de garantia de uma vida melhor. “Estão todos desempregados.” E é isso que lhe deixa “o coração tão negro” como o lenço que tem enrolado à cabeça, e que agora desenrola para nos mostrar a cor — é preto mesmo. 

“Isto hoje é só entrevistas”, lança-lhe outra peixeira, também junto da sua banca de peixe seco. Na praia, por trás delas, ergue-se o “estindarte” que é como aqui chamam ao estendal, os rectângulos de madeira e rede, inclinados e virados para sul, onde o peixe é colocado para secar ao sol. A tradição começou, não se sabe exactamente quando, como forma de preservar o peixe em tempos de maior dificuldade e garantir que a comida chegava para os dias em que os homens não podiam ir ao mar. Embora o carapau seja o mais emblemático, secam-se diferentes peixes, do cação à petinga e à sardinha (estes peixes mais pequenos não são escalados), passando pelo polvo. 

As técnicas também diferem: um carapau seco deve ficar uns dois a três dias ao sol, dependendo das condições atmosféricas e da temperatura e pode ser comido cru e desfiado ou cozido e regado com azeite, vinagre ou sumo de limão e alho picado. O carapau a que chamam “enjoado” fica apenas um dia, ou algumas horas ao sol, passa por uma salmoura menor e é geralmente grelhado. 

Por força do hábito, os nazarenos ganharam gosto a este peixe assim seco e deliciam-se quando o comem. Mas e os outros? Bem, os outros — os não nazarenos, entenda-se — passam, olham, fazem perguntas. E não compram. É por isso e porque dantes o “estindarte” era muito maior e a praia estava cheia de mulheres a vender, que Ana Palmira não está optimista.

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No entanto, esta história pode ser diferente — e muito mais feliz. Se nesse dia Ana Palmira estava mais a dar entrevistas do que a vender peixe, era porque dali a pouco ia realizar-se um jantar dedicado precisamente ao carapau seco da Nazaré. 

O que está a acontecer aqui é uma coincidência de interesses que pode ajudar a virar o destino à tradição do carapau seco. O jantar está marcado para a Taberna do 8 ó 80, casa aberta há dois anos na marginal, por Abel Santos, filho da Adélia, da Taberna d’Adélia, famosa na Nazaré pelo seu peixe fresco. Foi o restaurante de Abel o local escolhido pelo projecto Endògenos — uma iniciativa do empresário Nuno Nobre, que, em colaboração com o chef António Alexandre, pretende recuperar vários produtos tradicionais portugueses, das algas ao capão, passando pelo ouriço-do-mar — para este jantar em torno do carapau seco.

Quem forneceu o carapau esta noite foi a Maria da Nazaré. Por isso, é tempo de conhecermos os irmãos Samuel e Inês Fialho, ele com 28 anos, ela com 34, netos e filhos de mulheres que dedicaram a vida ao peixe seco da Nazaré e que acreditam que esta é uma tradição com futuro. Foi essa razão que os levou a criar a marca "Maria da Nazaré" —uma homenagem a essa avó, chamada Maria da Nazaré, hoje com 91 anos, que é para eles um exemplo. 

Inês fez o curso de Educadora de Infância, viveu em Lisboa, tem um marido ligado ao cinema e, há três anos, quando ficou grávida da filha, decidiu ir viver para a Nazaré. “Pela qualidade de vida”, explica. O facto é que a carreira de educadora de infância foi substituída pela venda de peixe.

Encontrámo-la, bem-disposta e sorridente, pelas nove da manhã, junto à mãe, Isaura, a amanhar o peixe numa banca do mercado municipal. No café do mercado, há grande animação, com as vendedoras da praça a beber café de saco e a comer pão com manteiga. Isaura e Inês já receberam os carapaus e os batuques (têm um vendedor que compra na lota e lhes vende no mercado) e vão passar algumas horas a abrir cada peixe, a tirar-lhe a tripa, a escalá-lo à mão, fazendo correr o dedo junto à espinha, sempre debaixo de água corrente e, por fim, a passá-lo por duas ou três salmouras. Muito importante, sublinha Inês, é tirar-lhe completamente o sangue, porque é este que atrai as moscas, um dos maiores perigos para este produto. 

Quando já têm vários alguidares cheios de peixes abertos, põem-nos num carrinho de mão e atravessam as ruas da Nazaré, vazias àquela hora, até ao estendal. Na praia, de manhã cedo, só as gaivotas, que enchem o areal na esperança de apanhar um peixe, ou pelo menos as tripas, que algumas peixeiras têm o hábito de lhes dar.

Os paneiros (as tábuas com rede) têm diferentes cores para se saber a quem pertencem. As duas desembrulham os seus paneiros, protegidos por um plástico azul, e aparecem os primeiros, verde-claro, e os restantes, vermelhos. “O vermelho foi sempre a cor da minha mãe”, diz Isaura. Pega num e segura-o ao alto para mostrar o M e o N, pintados a vermelho, com os quais a Maria da Nazaré — que começou neste trabalho em 1928, tinha apenas seis anos, e continuou até aos 87 — identificava as suas tábuas. 

Samuel agarra no tablet para mostrar o site da marca e o filmezinho que fizeram com a avó a mostrar como se cozinha o carapau seco — na realidade, um processo muito fácil, semelhante ao do bacalhau. “O que nós sentimos foi que muitas pessoas, nomeadamente os turistas, tinham curiosidade em saber o que era o peixe seco, mas nem sempre é fácil explicar.” Sobretudo para as peixeiras na praia, que não falam outras línguas e têm apenas os gestos para se fazer entender.

Por isso, numa assumida estratégia de marketing — até porque Samuel tem uma starp-up dedicada a projectos digitais, entre os quais, os recentemente lançados áudio-guias Nazaré Museum, com informação para os visitantes sobre as diferentes rotas que podem fazer na Nazaré — a “Maria da Nazaré” criou uma embalagem em triângulo e colocou lá dentro um, apenas um, carapau. Isto permite que quem não conhece prove e satisfaça a curiosidade. “Os estrangeiros não vão comprar meia dúzia ou uma dúzia de carapaus, como as mulheres vendem na praia, mas são capazes de comprar um para saber como é.” E ainda para mais porque a embalagem conta a história desta tradição, em português, inglês e francês.

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Samuel, Inês e Isaura Fialho: netos e filha de Maria da Nazaré, querem preservar a tradição do peixe seco

A Nazaré sempre se encheu de gente para o Verão. E ainda hoje se vêem as mulheres nas ruas segurando placas anunciando quartos para alugar. Mas foram as ondas gigantes surfadas por Garrett McNamara que recentemente lhe deram fama mundial. “Aparecem muitos turistas a perguntar a que horas é a onda gigante”, ri Samuel. “Temos de melhorar a informação que damos porque as pessoas têm a expectativa de ver ondas grandes todos os dias, e não é assim.” O facto é que aparecem muito mais estrangeiros e, em particular, muitos japoneses e coreanos, que ficam surpreendidos a olhar para o peixe a secar. Quem não fica nada surpreendido são os africanos — que usam muito peixe seco nos seus cozinhados e chegam a vir à Nazaré de propósito para o comprar.    

A ideia de Samuel e Inês de vender um carapau com explicação incluída é boa, mas não será certamente suficiente para salvar o carapau seco se nada mais acontecer. É aqui que entra a tal convergência de interesses. Acontece que o Endògenos se interessou pelo carapau seco — até porque foi um produto que o chef António Alexandre já trabalhou no passado — e que a Câmara da Nazaré, dirigida por Walter Chicharro, está também muito empenhada em não deixar morrer a tradição, que considera parte fundamental da identidade nazarena.

“Estas mulheres, com o seu trabalho, preservam grande parte do património da Nazaré”, diz o presidente da câmara. “Por isso, queremos melhorar as condições em que trabalham.” O projecto que a autarquia está a desenvolver prevê o reaproveitamento de uma área no interior do centro cultural, que funciona no edifício da antiga lota, precisamente em frente ao estendal. 

Aí, as peixeiras terão um espaço para amanhar o peixe e fazer a salmoura — algo que hoje a Maria da Nazaré, ou seja, a Inês e a mãe, faz no mercado municipal e as outras fazem na praia. O objectivo é também permitir que os turistas e outros visitantes assistam ao processo. Depois da salmoura, as mulheres poderão atravessar a rua e pôr o peixe a secar nos paneiros, numa zona que hoje está muito danificada (até por causa dos recentes temporais) e que será reabilitada com um projecto do arquitecto paisagista Álvaro Manso. “Queremos tornar a secagem num museu vivo”, frisa Walter Chicharro. “E isso é uma prioridade para a Nazaré.” 

Para já, e enquanto este projecto não se concretiza, a câmara está a planear, para o Verão, a primeira Mostra do Carapau Seco, mais uma oportunidade para mostrar o que acreditam que é o potencial gastronómico deste produto. Potencial que, para já, foi explorado por António Alexandre em colaboração com Ana Pereira, da 8 ó 80, no jantar acompanhado por vinhos da Quinta do Gradil, do Cadaval. 

Houve carapau — neste caso, foi o “enjoado” o único utilizado — de várias formas. Para entrada, apareceu em patê, em patanisca e em pizza. Depois, num wrap tradicional e noutro com couve, acompanhado por amendoim e mel (dois outros produtos que o Endògenos está a tentar valorizar), seguido por uma sopa de peixe com um ravioli de camarão, carapau e algas. 

Houve ainda um muito bem conseguido arroz malandrinho com o carapau enjoado desfeito, dando uma textura e um sabor surpreendentes; e, como prato de carne, um mais arriscado frango recheado com morcela de arroz, espinafres e carapau sobre um puré de maçã, pêra e beringela. No final, como é tradição nos jantares do Endògenos, até a sobremesa teve carapau: maçã assada com carapau, nêsperas, mel caramelizado, pêra grelhada e gelado de amendoim e mel. 

Samuel Fialho tem uma ideia muito clara do que gostaria que fosse o futuro do carapau seco. “Era importante que este produto começasse a ser usado nos restaurantes da Nazaré, porque as pessoas vêem-no aqui à venda e não conseguem prová-lo nos restaurantes. Era bom tê-lo pelo menos nas entradas, num patê por exemplo.” Mas há um grande obstáculo, que Samuel explica, e que Abel, o dono da Taberna do 8 ó 80, confirma: a fiscalização. Enquanto não estiverem garantidas as condições de higiene e segurança alimentar que cumpram os requisitos da lei os restaurantes da Nazaré, não vão servir o peixe seco, mesmo que muitos nazarenos o comam diariamente nas suas casas. Ninguém quer correr o risco de ter o estabelecimento fechado por causa disso. Solução? Avançar com o processo de certificação, algo em que a câmara, em colaboração com a "Maria da Nazaré", quer apostar. 

Inês, sentada à mesa da taberna, está entusiasmada com o que provou: “Achei fabulosa a nova dimensão que o carapau seco pode ter. Há pouca malta nova a pegar nas coisas. Na minha geração, ninguém quer estragar as unhas a arranjar peixe. Mas neste momento este é o meu projecto de vida, quero levar o nome da minha avó mais longe.” Em casa, com 91 anos, Maria da Nazaré ainda insiste em fiscalizar o peixe para ver se a filha e a neta estão a fazer tudo bem. Há uma fama a respeitar, uma tradição a manter. 

Raul Brandão escreveu que as peixeiras da Nazaré “são a vida desta terra”. No livro Os Pescadores, escrito no início da década de 1920, fala delas assim: “Surpreendo-as na labuta de todos os dias: carregando peixe, salpicando-o de sal e estendendo na areia sobre palha o cação, o polvo, o carapau, para a seca.” Também Alves Redol descreve a “lida sem fim” destas mulheres.

Hoje já são poucas. São cada vez menos. “Só com a certificação podemos crescer”, diz Inês, camisola e calças pretas, botas de borracha nos pés, o cabelo claro a vir-lhe para a cara, empurrado pelo vento da praia. Diz que gostava de usar um avental típico da Nazaré e que ainda vai pensar numa forma de também não deixar que estes desapareçam quando as mulheres que começam  agora a montar à nossa volta os seus estendais um dia também desaparecerem. “Mas nós sozinhos, com a 'Maria da Nazaré', não vamos a lado nenhum”, frisa Samuel. Este tem de ser um projecto comum às mulheres que toda a vida trabalharam na secagem do peixe, as mulheres, como Ana Palmira, que hoje têm medo que “isto esteja a acabar”. Inês e Samuel vêm dizer precisamente o contrário: “Isto tem futuro.”

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