Fernão Mendes Pinto, o irredutível português

Entre o cinema de animação e o teatro de marionetas, Marcelo Lafontana recria a Peregrinação no Mosteiro de São Bento da Vitória.

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Um filme de animação em tempo real ou teatro filmado? MIGUEL NOGUEIRA

Pequeno, barbudo e capaz de sair com vida das mais impraticáveis situações (um ataque de corsários, uma masmorra, um mercado de escravos, um naufrágio, os perigos sucedem-se a cada virar de página e nem sequer está aqui o livro todo): é assim, irredutível como o irredutível Astérix, que Marcelo Lafontana vê Fernão Mendes Pinto, o herói nem sempre glorioso cuja Peregrinação está a recriar desde este sábado no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto. Metade teatro de marionetas, metade filme de animação, o novo espectáculo da Lafontana – Formas Animadas começa num pequeno cenário giratório que permite às figurinhas de papel viajarem de Lisboa ao Japão em menos de um minuto e acaba num ecrã gigante onde as suas façanhas se vêem ampliadas à escala do mito fundador que são os Descobrimentos. A mesma escala, aliás, que torna visíveis a olho nu as partes desse mito que são menos facto do que lenda.

É exactamente aí, explica Marcelo Lafontana, que o que é técnico se torna político. “No aspecto puramente técnico, o projecto Peregrinação tinha como objectivo encontrar nas novas tecnologias meios que permitissem a evolução das técnicas tradicionais das formas animadas. E o que encontrámos foi este híbrido que tanto podemos ver como um filme de animação feito em tempo real ou como teatro filmado – usando vocabulário do cinema como a focagem e a desfocagem, a alternância entre o grande plano e o plano geral, os movimentos de câmara, efeitos que se prestam a esta história de muitos lugares e de muitas deslocações, uma história que é um autêntico carrossel”, resume. Mas a saga que Fernão Mendes Pinto viveu para contar é também “o início de uma narrativa alternativa dos Descobrimentos”, muito menos politicamente correcta: “Objectivamente, foi uma chacina: uma caravela normal partia com 200 a 300 tripulantes e regressava com uns 18. É toda uma história trágico-marítima – mas também tragicómica, porque o português é o campeão do desenrasque.”

Brasileiro, mas descendente de espanhóis e radicado em Portugal há 25 anos, Marcelo Lafontana está bem no centro dessa história e por isso espera “não ferir susceptibilidades”: “Não quero que pareça que estou a criticar aquilo que não é meu – porque é. Mas a Peregrinação fez-me pensar muito e acho que é o primeiro espectáculo em que eu não justifico completamente o facto de falar com sotaque do Brasil.”

Ainda assim, argumenta, há suficientes paralelos entre a figura “absolutamente amoral e livre” de Fernão Mendes Pinto e o Padre António Vieira para que o sotaque não esteja assim tão fora do sítio. E mesmo que estivesse: esta Peregrinação que fica no Mosteiro de São Bento da Vitória até ao próximo dia 23 é no fundo uma ficção de Lafontana a partir de um relato que imaginamos não ser inteiramente verdade.

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