Diz-me o que os teus antepassados cultivavam, dir-te-ei quem és

Uma nova teoria, a “teoria do arroz”, permite explicar em parte porque é que os chineses do Sul são menos individualistas do que os chineses do Norte. Tudo parece resumir-se à cultura do arroz versus a do trigo.

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Cultura do arroz na província chinesa de Yunan, Sudoeste da China Andrew Wong/REUTERS

É quase um lugar-comum dizer-se que as sociedades ocidentais são, de uma forma geral, mais individualistas e que as orientais são mais comunitárias. Até aqui, os especialistas têm tentado – sem muito sucesso – atribuir estas diferenças psicológicas a fenómenos como o aumento da riqueza produzida e do nível de instrução dos diversos países. Mas agora, na revista Science com data desta sexta-feira, resultados obtidos por cientistas dos EUA e da China sugerem não só que as culturas orientais são mais heterogéneas do que se pensava nas suas atitudes de cooperação, como também que a explicação dessas diferenças de comportamento poderá passar pela história milenar da sua agricultura local.

“Há duas lições a tirar do nosso estudo”, explicou ao PÚBLICO Thomas Talhelm, da Universidade de Virgínia (EUA). “Primeiro, que a cultura chinesa Han não é uniforme. Há 1300 milhões de chineses [de etnia] Han na China, mas a cultura do Norte é muito diferente da do Sul.”

“Em segundo lugar, que essas diferenças correspondem às fronteiras históricas da cultura do arroz e do trigo”, salienta o cientista, explicando que, no Sul, o facto de se cultivar arroz há gerações – o que exige uma cooperação intensiva – torna a sociedade “muito mais focada nas relações de proximidade, tímida perante os estrangeiros e empenhada em evitar os conflitos”. Pelo contrário, no Norte da China, onde se cultiva o trigo, cereal que permite uma liberdade muito maior na gestão da actividade agrícola de cada um, “isso explica por que é que as pessoas são mais individualistas, mas extrovertidas, mais directas, até mais agressivas”, acrescenta Talhelm.

O investigador teve a ideia da “teoria do arroz”, que é como chama a esta sua explicação de psicologia cultural, quando vivia na China. “Eu ensinava inglês num liceu no Sul da China – e como sou psicólogo cultural, estava sempre a observar o comportamento dos outros”, conta-nos ainda. “E reparei que quando uma pessoa me dava um encontrão na mercearia, ela ficava logo tensa, olhava para o chão e escapulia-se discretamente. Parecia mesmo empenhada em evitar os conflitos.”

Ora, quando uns meses mais tarde Talhelm viajou para o Norte do país com um amigo norte-americano, deparou-se com atitudes radicalmente diferentes. “Estávamos num museu e uma responsável interpelou-nos: ‘Falam mesmo muito bem chinês! Mas o seu chinês [disse apontando na minha direcção] é melhor do que o seu chinês [e apontou para o meu amigo]’. Ficámos espantados. Foi há anos, mas ainda falamos disso entre nós! As pessoas no Norte pareciam muito mais directas, mais dispostas a dizer-nos a verdade mesmo quando podia ser incomodativa.”

Comboio, autocarro, carris

Para testar a sua teoria, Talhelm e colegas da sua universidade, das universidades de Michigan (EUA), da Universidade Normal de Pequim (China) e da Universidade Normal do Sul da China submeteram 1162 estudantes universitários de etnia Han, vindos de todo o país, a diversos testes de psicologia experimental. Mais precisamente, o estudo foi realizado em seis cidades chinesas, lê-se num comunicado da Universidade de Virgínia: Pequim (no Norte); Fujian (no Sudeste); Guangdong (no Sul); Yunan (no Sudoeste); Sichuan (no Centro Oeste); e Liaoning (no Nordeste).

Nos testes, escrevem os autores, apresentavam aos participantes listas de três itens – por exemplo, “comboio, autocarro, carris” e pediam-lhes para escolher os dois itens que melhor se emparelhavam. As pessoas das culturas ocidentais e individualistas, salientam, escolhem o par que pertence à mesma categoria abstracta, ou analítica (neste caso, comboio e autocarro), enquanto “as do Leste asiático e outras culturas colectivistas escolhem um par mais relacional, ou holístico” (neste caso, comboio e carris).

Os cientistas constataram então que, quando avaliados por este tipo de testes, os chineses do Norte eram efectivamente mais individualistas e analíticos – mais parecidos com os ocidentais – e os do Sul mais interdependentes, com um pensamento mais holístico e ferozmente leais aos seus amigos. Tal como no Japão ou na Coreia do Sul, explica ainda o comunicado.

E mais notável ainda: essas diferenças psicológicas verificavam-se com a mesma intensidade mesmo nas regiões situadas na fronteira geográfica entre o Norte e do Sul – ou seja, em populações que viviam quase em frente umas das outras, só que em margens opostas do rio Iansequião (Iangtzé).

“A ‘teoria do arroz’ permite pôr em causa a narrativa dominante, acerca da China, da dicotomia urbano/rural”, diz-nos ainda Talhelm. “A urbanização é uma força importante, mas existem enormes diferenças [como esta] que nunca teríamos descoberto olhando apenas para esse factor.” Apesar dos seus níveis de riqueza e de modernização, as regiões onde se cultiva o arroz são menos individualistas do que o Ocidente ou o Norte da China, acrescenta.

O próximo passo? “Tentar replicar os resultados na Índia”, responde-nos Talhelm. "Tal como a China, a Índia tem mil milhões de habitantes e uma divisão arroz/trigo. E também é interessante por que essa divisão traça ali uma fronteira entre o Leste e o Oeste e não entre Norte e o Sul.”
 

   

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