O bronco do meu filho

O meu puto é um bocado bronco – e cruel: adora aquela cena num dos Indiana Jones em que o dito, perante um humano de um país em desenvolvimento que o ameaça com uma espada, saca da pistola e, sem mais, dispara

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Ricardo Moraes/ Reuters

As crias dos meus amigos são seres especiais, de sensibilidade apurada, que libertam ditos de encantar: “A Lua é o olho do céu”, “As folhas caem por serem amigas do chão”. Num enlevo babado, os pais postam estas saídas no Facebook e eu faço “Like” - enquanto escondo uma profunda irritação.

A extrema sageza artístico-poética dos petizes não cai do céu: estes amigos – historiadores de esquerda, cronistas que prometem imolar-se no fogo se as reformas baixarem – tendem a criticar o pai de classe média que tenta encarreirar o filho para um curso universitário (“Marketing de Cenas”, “Gestão do Diabo a Quatro”), vendo nisso um excesso de competitividade que recusam para os seus. Mas acabam por fazer o mesmo, condicionando a garotado de modo a que se tornem o que os pais sonharam.

Estes miúdos nunca ouviram uma canção da Xana Toc-Toc, muito menos viram um episódio do Noddy. Falam inglês aos quatro, sabem contar até cem, não brincam com pistolas porque a agressão é uma coisa feia e aos fins-de-semana são levados a workshops de barro porque o que seria de nós se não transmitíssemos às crianças o nosso passado. Por vezes viro-me para o imbecil do meu filho e berro-lhe: “Porque é que não produzes desenhos de elevado potencial artístico, palerma de um raio?” E de volta ele dá-me um coice: andar à pancada, perseguir pombas (por mais que eu lhe diga que nunca vai apanhar alguma), isto são as brincadeiras que ele aprecia. O catraio não sabe contar, não sabe ler e não parece interessado em aprender. Grama é de comer: para ele uma refeição só acaba quando já não há mais comida em casa e não se consegue mover.

O meu puto é um bocado bronco – e cruel: adora aquela cena num dos Indiana Jones em que o dito, perante um humano de um país em desenvolvimento que o ameaça com uma espada, saca da pistola e, sem mais, dispara.

Há muito que desisti de o educar – o meu objectivo, ao fim de cada meia semana com ele, é simplesmente entregá-lo vivo à mãe. E quando, dentro de anos, tudo na vida dele ruir, espero que o mundo ainda seja suficientemente machista para responsabilizar a mãe. Porque é que desisti? Porque, 1: ele não diz nada que me interesse, 2. não se cala com perguntas imbecis; 3: não posso ver bola sossegado que pede logo o Panda. Eu sei que devia esforçar-me para lhe dar o melhor – mas porque é que hei-de dar o melhor a um tipo que não me agradece quando lhe faço o jantar e a quem limpo o rabo há quatro anos e mesmo assim insiste que sabe mais que eu? Se sabes mais que eu limpa o teu próprio rabo.

Há dias fui buscá-lo à escola e descobri-o num estado próximo do de um refugiado sírio, com folhas no cabelo e o casaco coberto de terra.

“O que é que te aconteceu?”

“Andei pelo chão”.

“Mas porquê?”, perguntei, imaginando-me dentro de anos a ir pô-lo no Patriarche, com um vício em heroína, ou a ir buscá-lo ao hospital após um acidente de mota.

“Por causa das minhocas”.

“Que minhocas?”

“Há minhocas na terra”.

“E então?”.

“Eu queria ver as minhocas e por isso andei pela terra”.

Confesso que fiquei comovido com o meu pequeno bronco: o palerma demonstrou curiosidade, o princípio básico da inteligência (que se opõe às certezas do bom gosto). Tinham-lhe dito que havia minhocas na terra e ele não foi de modas: toca a ir para o chão procurá-las.

“Encontraste alguma?”

“Não. Mas amanhã vou procurar outra vez”. Há-de haver lugar no mundo para putos broncos, sem poesia, que não foram desenhados desde bebés para serem especiais. Que mais não seja, no Patriarche.

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