Sábios, os que calam

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Miguel Manso

O publicitário Jesús Carrasco estreia-se na literatura com um romance de uma crueza implacável. Em Intempérie qualquer palavra a mais pode custar a vida.

Aos 42 anos o espanhol Jesús Carrasco aparece com um primeiro romance inclemente. Natural de Badajoz, onde nasceu em 1972, cresceu em Olivença e foi lá que aprendeu essa antiguidade ancestral que transporta para um livro sobre sobrevivência, medo, e os pilares da sabedoria onde tudo o que é humano está em erosão. Resta o peso da memória, o entendimento das coisas, a vontade. Intempérie transmite o que há de mais pungente através do mesmo silêncio com que um velho pastor, que também podia ser um anjo, ensina a arte de resistir no gesto de ordenhar uma cabra. Carrasco preferia que não se dissesse nada disto sobre o seu primeiro romance já traduzido para onze línguas. Preferia que o leitor entrasse nas pouco mais de 200 página deste livro ignorante de qualquer intenção. O silêncio do pastor é o mesmo que habita o autor e a que este vai cedendo porque é preciso falar. Sempre num tom velado, sobre um ambiente onde o erotismo existe enquanto resistência à pornografia. Das imagens, das palavras.

Numa tarde em Lisboa, percorrem-se personagens sem nome num tempo indefinido. Um menino, um pastor, um aguazil cruel. Adivinha-se a luxúria. Procura-se um Deus sem nunca rezar. Estamos no século XX, pela ditadura espanhola a olhar uma planície que pode ser na Extremadura. Esse menino que fugiu de casa está escondido num buraco e escuta as vozes dos homens que o procuram. Tudo o que não quer é que o encontrem e o levem de volta para o que mais o aterroriza. O que se segue no livro é ditado pelo medo mais nu. Na conversa há a ressaca de um aplauso da crítica que não esperava. “Tudo isto está a ser muito intenso. Às vezes com alegria, outras com angústia…”, diz Jesús Carrasco, nome ajustado a um estilo que diz ter aprendido com a leitura de americanos como Carver, McCarthy, Faulkner, mais do que com Camilo José Cela, a quem também tem sido comparado. O Jesús Carrasco escritor podia ter sido um nome criado pelo Jesús Carrasco publicitário, marketing do melhor, e teria sido certeiro. Não foi. Sentado numa cadeira, cotovelos sobre os joelhos, o rosto apoiado nas mãos em “v”, tem uma figura também a desafiar o tempo. Magro, bigode largo, careca, garante que não esculpiu essa imagem a pensar no impacto. “O bigode também é antigo”, sorri. E se não lhe perguntarem pela escrita, ele prefere falar da calçada portuguesa. “Um país que cuida assim do seu empedrado não pode ser um mau país”.



Surpreende-o boa recepção a um livro tão duro?

Claro. Não estava à espera de nenhuma recepção. Quando escrevi o livro nem sequer esperava que fosse publicado.

Trabalhou muitos anos para publicidade. Até que ponto a mensagem rápida, sedutora desse tipo de escrita o ajudou na secura deste romance onde há o cuidado de não haver uma palavra a mais?

Na publicidade não se pode escolher entre um texto longo ou curto. Tem de ser breve, sedutor e o mais intenso e potente possível num curto espaço de tempo, e memorável. Passei 15 anos da minha vida a fazer isso todos os dias. O que escrevo em ficção está contaminado por isso. Aprendi também a pensar em quem vai receber o texto, a considerar quem recebe a mensagem, e o pressuposto é o de que não é tonto, que é inteligente e que a mensagem tem também de ser inteligente. Tenho sempre o outro na cabeça. Escrever romance ajudou-me a apurar essa ideia.

A imagem de um leitor permanece?

Sim. Mas a imagem de um leitor que não é complacente. Não escrevo a pensar no leitor, mas escrevo para que me leiam e tento não aborrecer o outro. Quando leio um texto meu de forma crítica, penso: “isto é aborrecido porque estou a contar em 20 páginas o que podia contar em duas”. O leitor não é burro e não merece que o trate como tal. Tento não escrever um solilóquio em que me sinto um artista. Não me interessa que as pessoas façam um esforço e entendam se quiserem. Quero que se sintam seduzidos.

Quanto tempo lhe levou a escrever este livro?

Foi escrito em duas fases. Comecei há uns oito anos. Escrevi 40 páginas e parei porque não sabia como continuar.

Parou em que parte?

Não sei dizer, porque dessas 40 páginas não ficou nada. As poucas que ficaram estão repartidas pelo texto. É como se tivesse havido um bloqueio. Comecei e escrevi outro romance. Estive três anos ocupado. Quando terminei não gostei e então retomei essas 40 páginas.

Nesta Intempérie o que apareceu primeiro, o rapaz que foge?

A primeira ideia foi a de construir um romance a partir de uma personagem em conflito. Um rapaz fugia de casa e eu não sabia bem porquê. Se ele sabia, eu não. A minha hipótese de partida era a de que um rapaz iria fugir de casa e não voltaria.

À medida que se vai avançando, vai dando pistas. Foi assim que aconteceu, a história foi-se escrevendo também para surpresa do autor?

Isso é uma coisa de tentativa; o que dizer e não dizer, como o erotismo e a pornografia. Opto pelo erotismo, pelo que se adivinha. Posso revelar umas partes e outras calá-las para que o leitor se interrogue, coloque perguntas, sinta a estranheza e a inquietação que é a minha; que entre no romance, que queira participar e seguir a cena, eliminando hipóteses.

O ambiente negro, sem clemência, no osso de uma sabedoria ancestral onde permanece um sentido de justiça ou de ética num lugar que parece não ser outro que não o inferno. O contágio de Cormac McCarthy ou William Faulkner não é puro acaso pois não?

Tenho grande admiração por Faulkner e McCarthy. Se isso passa aqui fico muito contente.

O rapaz é o protagonista, mas é o velho pastor, na sua sabedoria ancestral, que marca a acção com o seu silêncio.

O velho pastor é um tipo de herói que conheço. Parece-se com o meu pai. Ele carregava toda a sabedoria que os anos transportam e era muito silencioso. Ensinava aquilo que sabia mas não…

Não dizia tudo?

Não dizia tudo. Havia um certo mistério. Não quero dizer que o meu pai seja como o pastor, mas há algo do meu pai no pastor. Interessa-me essa coisa erótica, o que não está desvelado. A ideia de véu permite passar a luz, ver um pouco do que está no outro lado mas sem que se saiba exactamente o que é. Assusta-me o que é explícito, o que é evidente neste tempo em que tudo se mostra a todo o momento e em todo o lado. Isso retrai-me até um lugar mais escondido, como aquele em que cresci e que é um mundo mais antigo no qual o ritmo é mais lento, as coisas não se dizem inteiras e o esforço para entender o que se passa exige vias diferentes. Movo-me muito por aí e naturalmente o romance respira essa minha vida, a minha forma de experienciar o mundo. A forma do meu avô e do meu pai ensinarem é a do velho. Foi a que eu recebi.

Crê que a boa recepção ao livro se explica por esse nada óbvio, o tal antigo essencial?

Penso que agradou porque todos somos antigos, feitos da mesma matéria e todos padecemos dos mesmos males. E ainda que não queiramos reconhecer, ainda que pensemos que estamos fundados na modernidade, estamos apenas com o verniz da modernidade, mas vimos de uma tradição humana milenar e temos muito disso; conservamos muito da nossa raiz animal, muitos dos nossos comportamentos são ancestrais, temos ligação com a terra, mesmo que não pareça. Milénios de aprendizagem não desaparecem só porque há Internet. Essa sensação de simplicidade, das coisas básicas que fazem falta para que a vida faça sentido, todos as reconhecemos mesmo que no dia-a-dia não pensemos nelas. Agora parece que um dos elementos fundamentais da vida é a net. Há pouco tempo em Bruxelas alguém me dizia que podia passar um dia sem comer mas não sem Internet. Pareceu-me uma imagem muito poderosa e muito estranha e absurda. Precisamos de quatro coisas para viver e essas quatro estão no livro: sustento, segurança e alguém que nos ilumine, que nos ajude, e de amar e de quem receber amor.

O pastor fala das três potências da cruz de Cristo para transmitir o essencial da vida ao menino: memória, entendimento e vontade.

Ele é uma personagem essencial que tem de transmitir o que sabe. E o que sabe é muito simples e é tudo o que o menino precisa, que são as suas ferramentas para viver. Ensina-lhe outra coisa fundamental, um ofício. No momento em que o menino põe as mãos nas tetas da cabra recebe uma herança transmitida durante séculos: saber ordenhar. Nesse momento e nesse lugar é possível pensar que ele ganhou outra vida. O pastor não sabe durante quanto tempo vai poder continuar a salvá-lo e esse sentido de urgência é-lhe então passado.

O escritor deste livro é um homem da modernidade e os olhos que tem face a essa antiguidade são os de alguém que vive agora. O que é que esse olhar condiciona, o olhar para algo que apresenta como essencial no momento do acessório?

É tão fundamental... Do mesmo modo que é fundamental pensar na morte durante a vida e que o fim de toda a vida é a morte. Pensar a morte faz sentir a urgência e comprime a vida e faz-nos estar despertos, porque a qualquer momento se pode morrer. Por mais que tenhamos todo o conforto e um hospital próximo, temos de pensar que estamos aqui quase de passagem e tentar ao máximo concentrar-nos a perceber o que é importante ou corremos o risco de ser sepultados por esta aparência de facilidade e alienar-nos. De que as crianças morrem, de que há guerra, de que há injustiças, de que o país vai mal. Quero olhar as coisas deste lugar. Quero estar consciente disso. O livro é isso.

Como é o seu método de escrita?

Em geral parto de uma intuição. No princípio há uma frase, ou uma imagem, ou uma sensação. E parto de uma intuição de uma palavra carregada com algo que não sei o que é. Com essa intuição encaminho-me. Ponho-me a escrever, a investigar, a trabalhar o texto, a fazê-lo aparecer, a testar opções, a escrever, a escrever, a escrever e se consigo terminar um romance é porque essa intuição estava certa. Um romance é um processo que dura muitos anos e nunca se sabe como vai terminar até que termina. Ou tenho a intuição de que vale a pena ou é absurdo continuar.

Mas já revelou que escreveu muitos romances que não vai querer editar porque não são bons. A intuição estava afinal errada? De onde vem essa certeza de que não é bom?

Da intuição outra vez. Intuição ou juízo crítico de leitor.

Consegue esse distanciamento?

Sim, muito tempo depois consigo. Um dos grandes problemas dos escritores é sair do contexto. No momento em que se está a trabalhar o texto é difícil, a não ser que outros o leiam, os que estão à volta.

É preciso confiar muito.

Sim, mas tem de se ouvir as opiniões e saber enquadrá-las de acordo com as nossas intenções. Há uma certeza, uma coisa misteriosa, não sei o que é que nos diz: “por aqui vamos bem. Não sei como irá acabar, mas por aqui está bem.”

Como leitor, o que procura?

Isso é uma evolução. A cada quatro ou cinco anos há um nome que nos marca e tudo o que lemos. Desses, ponho em primeiro lugar Raymond Carver. Pensei que gostaria de ser escritor lendo Carver. Foi há vinte anos. Antes escrevia as minhas coisas, mas sem rumo. Então pensei que queria escrever como ele. Não é fácil e claro que não consegui. Mas logo apareceram muitos americanos com ele. Apareceu Richard Ford, veio John Updike. E li John Cheever e Faulkner e McCarthy. Muita literatura norte-americana, literatura europeia também, alguns franceses. Gosto muito de Georges Perec. Clássicos como Tolstoi ou Dostoievski, Cervantes, claro. Não há leitor espanhol que não tenha Cervantes dentro. E muitos espanhóis contemporâneos, como Ricardo Menéndez Salmón.

Têm-no ligado a Camilo José Cela. No entanto parece não se rever nele nem no chamado tremendismo espanhol.

Sim, eu li Cela, mas não me influenciou tanto. Creio que me comparam em especial com A Família de Pascual Duarte [romance de Camilo José Cela de 1942). São ambientes humanos extremos, em que tudo não parece poder ser pior, mas acaba sempre sendo. E também pela época em que se passa, numa Espanha muito cinzenta, triste, pobre. O ambiente narrado no meu romance é parecido, mas não vem do tremendismo. E se acaso vem de algum lado é do realismo social americano.

Há alguma reflexão sobre o actual momento histórico, de crise?

Não. Muita gente me pergunta, mas comecei o romance antes da crise rebentar. Não tive consciência da crise senão dois ou três anos depois da queda da Lehmon Brothers (2008). Parti de um momento anterior. A crise tem uma relação indirecta com o romance porque quando começou deixei de ter trabalho e cada vez tinha mais tempo livre. E em vez de escrever nas férias, aos fins-de-semana, ou à noite, dediquei-me amplamente. A crise ajudou-me a terminar o romance. Tive férias forçadas (risos).

E agora tem de falar do que escreve…

Confesso que se pudesse não diria uma só palavra sobre o livro. Penso sempre que se fala demasiado do livro. E uma palavra para mim já é demasiado. O escritor tem demasiada informação sobre o livro e essa informação contamina a experiência do leitor. O leitor deve confrontar-se com o livro de forma virgem. Esse é o leitor ideal. Mas apesar da antiguidade de que falo sou um homem da modernidade e entendo que se quero vender livros tenho de falar. Estou muito contente por estar em Lisboa, mas em termos puros creio que não deveria dizer nada. Se pudéssemos falar de qualquer outra coisa seria perfeito (risos)

Falemos de Olivença, onde cresceu. Que memória tem desse lugar?

Ainda no fim-de-semana lá estive. As minhas primeiras memórias são de Olivença. Sai de lá com quatro anos. Mas tenho recordações vivas, sobretudo da casa em que vivíamos, uma casa antiga, grande. Aprendi a andar de bicicleta dentro da casa com o meu irmão. Recordo-me da oficina do meu pai que era encadernador, encadernava livros com a minha mãe. São recordações quase míticas para mim.

E é verdade a sensação de se pertencer a dois países?

Para mim é. Sei espanhol, sou espanhol, não tenho a dupla nacionalidade, mas gostaria. Nascer em Olivença predispõe-nos a olhar Portugal com carinho, amor e doía-me quando sentia que Espanha virava costas a Portugal. Isso pode parecer pueril e meio hipócrita. Mas nasci em Olivença, a olhar Portugal, muitas palavras antigas da minha infância são portuguesas.

Por exemplo?

Gafanhoto. Cambalhota, palavras de crianças. 

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