Criado primeiro organismo vivo com “letras” artificiais dentro dos genes

O ADN da nova bactéria, que se reproduz mais ou menos normalmente, integra componentes de base que não existem na natureza, expandindo assim, pela primeira vez, o “alfabeto” do código genético.

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O código genético "expandido" possui um par de bases artificiais, aqui designado por X-Y Synthorx

O património genético dos seres vivos sempre se escreveu com quatro letras apenas – A, T, G, C. É assim que são designadas as quatro moléculas, ou bases, que formam a grande cadeia de ADN que todos temos nas nossas células. Mas a partir desta quarta-feira, o chamado código genético passou a ter… mais duas letras, totalmente artificiais e nunca vistas na natureza. O avanço, que segundo os autores abre o caminho a aplicações que vão da medicina à nanotecnologia, foi anunciado na revista Nature.

O que os cientistas, liderados por Floyd Romesberg, do Instituto Scripps (EUA), conseguiram fazer foi introduzir essas duas novas moléculas no ADN de uma bactéria que, apesar das intrusas, continuou a ter uma vida – e uma reprodução – essencialmente normais.

As letras do código genético não se combinam de qualquer maneira, mas apenas para formar dois pares: A-T e G-C. São estes pares de bases que constituem os degraus da longa “escada” (a dupla hélice) enrolada sobre si própria da molécula de ADN. E é este rígido emparelhamento químico que faz com que, quando uma célula viva se divide, o seu ADN seja capaz de fabricar uma cópia de si próprio. Abrindo-se tal e qual um fecho éclair, dá lugar a duas “metades” que irão cada uma reconstituir, de forma fidedigna (ligando sempre A a T e C a G), duas novas moléculas de ADN. Uma para cada célula-filha.

Desde finais da década de 1990 que o laboratório de Romesberg se lançou na pesquisa de moléculas artificiais que pudessem desempenhar o papel das bases do ADN – e que, em princípio, seriam portanto capazes de comandar o fabrico de novas proteínas e até de novos organismos, explica o Instituto Scripps em comunicado. Mas só a partir de 2008 é que os cientistas começaram a obter resultados decisivos.

A tarefa era hercúlea por várias razões. Por um lado, as moléculas que compõem o novo par de bases têm de se ligar com a mesma afinidade do que as bases habituais do ADN; também têm de permitir que o “fecho éclair” molecular se abra e se feche sem problemas, sob a acção da maquinaria natural da célula; e têm ainda de passar o crivo dos mecanismos celulares encarregados de reparar o ADN quando surgem erros de replicação. Se não for o caso, rapidamente as novas bases serão expulsas do património genético.

Em 2008, os cientistas identificaram possíveis candidatos a pares de bases e mostraram que funcionavam in vitro – ou seja, fora das células. Mas só agora é que conseguiram transpor a experiência para o interior de uma célula viva.

Ainda demoraram algum tempo a ultrapassar o que consideram ter sido o maior obstáculo: fazer com que essas duas moléculas artificiais (designadas d5SICS e dNaM) conseguissem penetrar nas células de Escherichia coli, uma bactéria comum do intestino humano muito utilizada em engenharia genética. Uma vez que estas bactérias não produzem elas próprias as novas bases, era obrigatório fornecer-lhas do exterior.

A equipa acabou por descobrir a solução em 2012: um gene vindo de uma alga, quando introduzido nas bactérias, permitia fazer exactamente isso. “Esse foi um ponto fulcral no nosso trabalho”, diz Denis Malyshev, autor principal, no mesmo comunicado. Cerca de um ano mais tarde, obtinham culturas de E. coli que, apesar de conterem material genético não natural, se multiplicavam e reproduziam o seu ADN, incluindo a parte artificial.

Os cientistas salientam que não é possível surgirem acidentalmente linhagens de bactérias com estas moléculas no seu código genético. “As novas bases só conseguem entrar nas células quando activamos” o gene vindo das algas, diz Malyshev. E mesmo assim, “se pararmos de as fornecer às células, elas desaparecem do genoma”.

“A vida na Terra, com toda a sua diversidade, está codificada por apenas dois pares de bases (…) e o que fizemos foi criar um organismo que contém esses dois pares mais um, que não é natural”, diz Romesberg. “Isso mostra que existem outras soluções de armazenamento da informação [genética] e, claro, aproxima-nos de uma biologia à base de ADN ‘expandido’, que poderá ter muitas aplicações entusiasmantes.”

A próxima etapa, dizem os autores, consistirá em mostrar que a maquinaria celular consegue transcrever o ADN semi-sintético em ARN, a molécula a partir da qual a célula fabrica as suas proteínas. “Em princípio (…), isso dar-nos-ia uma capacidade sem precedentes de fabricar proteínas feitas à medida para fins terapêuticos”, salienta Romesberg – ou para desenvolver novos nanomateriais.
 

   


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