O disfarce do regime

Um dos problemas dos regimes é o da sua delimitação. Nem sempre foi assim. Em tempos idos, os regimes eram depostos e outros se consolidavam por demonstrações de autoridade, de honras e de símbolos. Nada faria crer que não se percebesse sob que tipo de tutela se vivia. Na sua jubilosa afirmação, o novo regime impunha regras e princípios perfeitamente assentes e acordados por decreto, constituindo uma ideologia a proclamar. Não teriam de ser regimes de pacto, mesmo que, por vezes, fossem necessárias concessões a forças opositoras. O certo é que não se evitavam os pressupostos ideológicos – eles eram, antes, uma das manifestações vivas da nova imposição.

Mas hoje as coisas mudaram. O regime da primeira República durou, como se sabe, 16 anos, a que se seguiu um regime ditatorial de 48 (há quem lhe chame, talvez eufemisticamente, "segunda República"). Não há que enganar.

Entretanto, temos a vigência de 40 anos de democracia, mas ninguém sabe delimitar aquilo que o regime instaurado em 1974 implementou, na sua amplitude camaleónica. Estamos talvez demasiado próximos, destituídos da faculdade de distanciamento que nos permita distinguir o modelo de um regime ideológico de esquerda de um modelo desvitalizado das conquistas sociais e políticas de Abril (como estavam consagradas na Constituição), até chegarmos ao modelo ideológico actual, próximo do neoliberalismo escarninho, vazio e impudente. Um trânsito programático de natureza flutuante e sem cesuras abruptas.

A propósito de um outro assunto, Agustina Bessa-Luís escreveu que “o primeiro teatro (…) não tinha público; todos os que se reuniam em volta do drama eram consequência do drama. Foi o público que criou o teatro; mas foi ele também quem destruiu o drama”. Essa ténue linha entre drama e teatro pertence à ordem da cesura imaginária entre diversos regimes que se sucederam desde há 40 anos e que passaram diante dos nossos olhos quase despercebidos. As revisões constitucionais ajudaram a (de)compor as transições ideológicas: o modelo de regime pós 25 de Abril não é o mesmo de hoje. Vários inquéritos nos inventariam dimensões antinómicas da democracia. Há mesmo quem assegure viver-se em ditadura camuflada.

Nestes 40 anos, ter-nos-emos precipitado entre vários regimes sem darmos por isso? Demo-nos verdadeiramente conta que destruímos o drama de Abril – a autêntica experiência social da realidade –, em favor da criação de um espectáculo medíocre e imoral como aquele de que somos espectadores?

Conhecer o nosso tempo é uma virtude e nada menos do que um desafio.

Professor

 

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