Na linha da frente contra o gigante de gelo

O maior desastre no Evereste em que morreram 16 sherpas chamou a atenção do mundo para as condições desta população que arrisca a vida para levar todos os anos centenas de alpinistas ao local mais alto do planeta.

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A taxa de mortalidade dos sherpas é 12 vezes superior à dos soldados norte-americanos durante a guerra no Iraque Reuters

O tecto do mundo está muito próximo. O acesso, pela parte Sul, é feito através do Lhotse, “apenas” a quarta montanha mais alta do planeta, com 8516 metros. Mas é ao mítico Evereste, a 8848 metros de altitude, que todos querem chegar e, para isso, há um desafio monumental. Trata-se do glaciar de Khumbu, uma área de gelo fino instável, que parece poder desabar a qualquer momento, o que acontece frequentemente. Há quem lhe chame de “corredor da calamidade” e atravessá-lo é a rotina e o ganha-pão de muitos homens.

Diz à AFP Russell Brice, ex-alpinista e proprietário de uma agência de expedições nos Himalaias, que “em nenhuma parte do mundo alguém se atreveria a atravessar um glacial como este”. “Apenas se faz porque se trata do Evereste.” E o lugar que o ponto mais elevado da Terra ocupa no imaginário de milhares de “turistas de aventura” garante, muitas vezes, uma vida melhor para as comunidades locais de guias, os sherpas. Mas fazer dos caprichos da Natureza uma forma de vida acarreta graves riscos e os guias locais, conhecidos pela sua bonomia, lealdade e simplicidade, estão cada vez menos dispostos a arriscar tanto por tão pouco.

Foi precisamente no glaciar de Khumbu, na manhã de 18 de Abril, que 13 sherpas perderam a vida e três desapareceram, sem qualquer esperança de resgate. Estes homens pertenciam a uma classe à parte, mesmo dentro da comunidade. São conhecidos como “Icefall Doctors”, especialistas em cataratas de gelo, e a sua função é procurar trilhos seguros para que os alpinistas – normalmente americanos, japoneses ou europeus que pagaram e bem pela “aventura” – possam atravessar o glaciar. O objectivo é fazer com que os “clientes” passem o menos tempo possível no perigoso local. Num artigo na revista New Yorker, Jon Krakauer lembrava a subida que fez em 1996, em que teve de fazer quatro passagens pelo glaciar, enquanto cada um dos sherpas que o acompanhava fez o percurso trinta vezes, muitas das quais carregados com mochilas, tendas e garrafas de oxigénio.

A admiração que os sherpas recolhem não é, portanto, algo que surpreenda. A primeira mulher a alcançar o cume do Evereste, em 1993, Rebecca Stephens, descreve-os como “figuras heróicas”. “Sem eles não teria conseguido chegar lá acima”, disse ao Guardian.

Pior que uma guerra
Num dos países mais pobres do mundo, o Nepal, o rendimento que um sherpa consegue ao longo de uma época de três meses pode chegar perto dos seis mil euros, dez vezes mais do que o salário médio. Mas por trás do retorno económico está, por exemplo, uma taxa de mortalidade doze vezes superior à dos soldados norte-americanos durante a guerra no Iraque (2003-07), segundo um artigo de Jonah Ogles.

Em contraciclo está a cada vez maior segurança para os alpinistas ocidentais, devido à maior utilização de garrafas de oxigénio e de esteróides que minimizam os riscos de contracção de edemas cerebrais e pulmonares a elevada altitude. Os sherpas têm uma apetência natural para lidar com a dureza das montanhas, mas são eles que fazem o trabalho pesado – que se torna muito mais custoso a sete mil metros de altitude. No entanto, levam para si muito menos garrafas de oxigénio, devido ao seu alto custo e para não terem mais excesso de carga.

Foi com o neozelandês Edmund Hillary, a 29 de Maio de 1953, o primeiro a alcançar o topo do Evereste, que o fantástico feito passou a ser perseguido um pouco por todo o mundo. Desde então, o grande gigante foi vencido em 630 ocasiões, uma delas pelo português João Garcia em 1999. Mas é com os “turistas de aventura”, muitas vezes com pouca ou nenhuma experiência de alpinismo, que a subida ao tecto do mundo se massificou.

Actualmente, com a cada vez maior precisão das previsões meteorológicas, num dia com boas condições de visibilidade é possível ver autênticos engarrafamentos de expedições. “Na Primavera, em média, há 35 expedições simultâneas no Evereste”, contou, ao Le Monde, Didier Cour, proprietário de uma agência. “Em certos dias há mais de setenta pessoas no cume, e são obrigados a esperar que uns desçam para poder subir.” Já pouco resta da “mais alta solidão”.

Fuga à pobreza
Muita desta massificação das subidas aos Himalaias é fruto da atracção que a carreira de sherpa exerce junto das populações empobrecidas. Originalmente, apenas os homens desta etnia é que tinham as funções de guias das montanhas, mas actualmente é possível encontrar membros das etnias tamang, gurung ou chhetri.

A possibilidade da melhoria das condições económicas é a grande razão para quem ingressa numa profissão tão perigosa. Um artigo de Maio de 2013 do jornal Guardian mostrava o impacto que o turismo de montanha tinha na região. Tashi Sherpa é sobrinho de um sherpa que trabalhou em expedições nos anos 1950 e possui agora uma grande superfície de artigos desportivos na capital nepalesa, Kathmandu.

“Queriam que os sherpas continuassem a ser as mesmas gentes simples e ignorantes?”, questiona Tashi. “Queremos que os nossos filhos sejam educados e saiam pelo mundo”, diz, afirmando-se como um representante dessa nova geração que conseguiu dar o salto. “Beneficiei da melhor educação que os meus pais me puderam dar.” Como Tashi, outros sherpas conseguiram fugir à vida perigosa nos Himalaias graças aos rendimentos como guias dos seus pais e avós. Hoje, há até uma companhia aérea nepalesa cujo proprietário é sherpa, diz o mesmo artigo.

O desastre deste mês, o maior de sempre no Evereste, foi o rastilho para uma revolta sem precedentes dos sherpas. Perante a morte de dezasseis colegas e familiares, os guias decidiram encerrar as subidas muito mais cedo do que o final da época de Primavera, normalmente no início de Junho.

A tragédia chamou a atenção do mundo para aquela zona isolada e para os problemas que afectam os sherpas, que correm todos os riscos para os turistas aventureiros poderem alcançar a sua façanha. O boicote dos guias é uma forma de pressão sobre o Governo nepalês, que tem no turismo de montanha uma importantíssima fonte de receita, equivalente a 4% do PIB do país. Às famílias dos guias mortos foi-lhes concedida uma indemnização de mil rúpias (cerca de 290 euros), que consideram insuficiente.

É o caso da viúva de Tenzing Chottar Sherpa, morto aos 27 anos no glaciar. O casal contava com o salário que Tenzing ia obter esta época para poder enviar os filhos para escolas na capital. “Sonho com um futuro melhor para as nossas crianças, não quero que se tornem guias”, disse Ang Dali Sherpa à AFP. “Mas agora quem é que poderá dizer o que vai acontecer?”

A revolta dos sherpas veio também levantar o véu sobre os meandros do negócio do turismo nos Himalaias. Um “cliente” interessado em fazer uma expedição paga geralmente algo entre os 40 e os 60 mil euros a uma agência especializada nestes pacotes. Essa empresa é obrigada por lei a contratar uma outra agência intermediária nepalesa, que trata de praticamente tudo, desde os transportes do aeroporto e dos voos domésticos até às reservas de oxigénio e de providenciar os sherpas. O Governo tem ainda direito a uma “taxa” média de mil euros por cada alpinista que sobe ao Evereste.

No final da cadeia estão os sherpas, que entre todos os intermediários ficam com a fatia mais pequena e com o trabalho mais arriscado. Agora, tentam criar uma consciencialização a partir da tragédia que se abateu sobre eles, mas um boicote à sua actividade primordial também lhes é prejudicial. O marido de Sarkini Sherpa conseguiu escapar à morte no glaciar. “É uma tragédia terrível, mas os homens vão voltar à montanha”, diz à AFP: “Não há alternativa.”

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