O Vietname é aqui

O seu a seu dono: o título deste texto não é meu, mas de Jorge Coelho, que esta semana regressou aos palanques socialistas com a energia de quem havia despachado uma grade de Red Bull ao almoço.

Fosse do entusiasmo ou de algum visionamento acidental do segundo Rambo em reprise no canal Hollywood, o certo é que tivemos direito a metáforas políticas inovadoras, incluindo uma comparação de Portugal com o Vietname.

O que se passou foi isto: Jorge Coelho, com o coração ao alto e a voz no altíssimo, afirmou que o actual Governo é não só o “mais à direita que Portugal já teve”, como está a adoptar a actual política de austeridade por motivos nefandos. Ou seja, não para responder às “circunstâncias” em que nos encontramos, mas sim para impor uma mudança estrutural e – preparem-se – para “transformar este país quase num Vietname”. É verdade que está lá o “quase”. Mas não deixa de estar lá também o Vietname.

Vai daí, decidi visitar a Wikipédia. Acreditando eu que um ex-ministro das Obras Públicas – e, sobretudo, um ex-presidente executivo da Mota-Engil – é homem rigoroso, informado, e que sabe fazer contas, comecei por consultar a lista do Índice de Desenvolvimento Humano de 2013, para verificar a correspondente posição de Portugal e do Vietname. Portugal ocupa a 41.ª posição em 187 países. É fraquito. Mas o Vietname está em 127.º. No PIB per capita a diferença ainda é maior: 37.º para Portugal, 134.º para o Vietname. Diria que com 100 países lá pelo meio, nem o advérbio “quase” safa Coelho.

Continuei a investigar. População do Vietname? 90 milhões. Área? Quase quatro vezes a de Portugal. Regime? Tal como a China, é uma república socialista dominada por um partido único, o PCV – “C” de comunista, claro –, que ainda recentemente recebeu a visita de uma delegação do PCP liderada por Jerónimo de Sousa himself. Em entrevista ao Avante!, Jerónimo louvou os progressos registados no país, que, a exemplo da China e do Laos, afirma (diz ele), tem “como orientação e objectivo a construção de uma sociedade socialista”.

Eu diria que uma república socialista onde “as regras de mercado são concebidas numa perspectiva não-capitalista” (para citar novamente Jerónimo de Sousa) não será muito fácil de casar com o tal Governo “mais à direita que Portugal já teve”. Chatice. Mas, afinal, não há nada em que Portugal e o Vietname se assemelhem? Segundo a Wikipédia, há, sim senhor, e talvez fosse a isso que Coelho se referia: em ambos os países os carros circulam pela direita.

“Ah, e tal”, dir-me-ão certos leitores imbuídos de uma espectacular tolerância, “foi só uma comparação que lhe saiu mal”. Chamem-me esquisito, mas depois de o Partido Socialista só ter reparado na maior crise económica desde a década de 30 quando ela já nos estava a furar a pupila, e de ter achado que despejar rios de dinheiro na economia era a maneira certa de combater o excesso de dívida, as comparações manhosas e a falta de rigor metafórico aborrecem-me um bocado. Elas significam que boa parte do PS – aquela parte que ovacionou Jorge Coelho quando ele destacou o papel de José Sócrates no progresso do país – ainda não percebeu o que nos aconteceu em 2011. Portugal ser “quase” o Vietname não é só um problema de geografia e cultura. É um problema de demagogia barata – a mesma demagogia que nos trouxe até aqui. Passaram-se três anos e os socialistas não aprenderam nada de nada.

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