As mulheres e a revolução inacabada

As dimensões culturais do poder favorecem a manutenção das desigualdades de género na sociedade portuguesa.

Não esperaria que, em 2014, quatro décadas após a transição para a democracia, os meios de comunicação social persistissem na secular tradição de representar simbolicamente a história como obra masculina. Choca-me esta naturalização da ausência e o esquecimento fácil de personalidades femininas associadas ao devir histórico.

Um exemplo expressivo é o dossier especial da Agência Lusa, disponibilizado online, destinado a assinalar os 40 anos do 25 de Abril. Um documento em atualização, sem dúvida relevante, com artigos sobre a revolução propriamente dita, mas também sobre as evoluções do país nas mais diversas áreas e as perspetivas para o futuro.

Apesar dos seus méritos, confesso que não foi feliz o meu encontro com este trabalho jornalístico sobre a edificação da democracia em Portugal, uma vez que comecei por dele extrair uma conclusão pouco democrática. Entre os “nomes, da ditadura à democracia, que se tornaram incontornáveis na história recente de Portugal”, selecionados pela agência noticiosa, consta uma única mulher.

Trata-se de Maria de Lourdes Pintasilgo, que chefiou, em 1979, o V Governo Constitucional, também conhecido como o “Governo dos 100 dias”. Em 1979, foi absolutamente extraordinária, a nível nacional e internacional, a indigitação de uma mulher para aquela posição, ao ponto de os jornais se confrontarem com dilemas semânticos sobre se deveriam designar o cargo no masculino ou no feminino (prevaleceu a fórmula “senhora primeiro-ministro”).

É uma evidência que, desde então, as mulheres registaram avanços notáveis em diferentes áreas. Mas os meios de comunicação, sempre que silenciam a ação das mulheres, prolongam e legitimam os desequilíbrios de poder que continuam a existir. O próprio campo mediático continua a ser um “clube masculino”, bastando analisar a composição das administrações e das direções editoriais. Estes retratos da memória coletiva, por seu turno, influenciam as perceções dos públicos e favorecem a narrativa de que as mulheres são menos capazes e competentes ou mais irrelevantes.

Numa palavra, as dimensões culturais do poder, em que se incluem as representações veiculadas pelos media, favorecem a manutenção das desigualdades de género na sociedade portuguesa, que estão enraizadas, são sistémicas e persistentes. Estas são flagrantes e incompreensíveis nas instituições políticas (bem como, por exemplo, nas administrações das grandes empresas), como mostram os dados estatísticos. Nas 14 eleições legislativas realizadas entre 1975 e 2011, foram eleitos/as para mandato parlamentar 2.945 homens e 428 mulheres (12,7%). A eleição de mulheres alcançou o valor mais elevado de sempre, 27,4%, nas legislativas de 2009, quando pela primeira vez se aplicaram os mecanismos da paridade de género neste tipo de sufrágio (em 2011, este indicador recuou um ponto percentual). A presença feminina nos executivos governamentais alcançou o nível mais elevado (18,9%) no 18.º Governo (2009-2011), de José Sócrates.

Nos últimos 40 anos, também tem sido lenta a progressão das mulheres nos lugares hierarquicamente mais elevados da política – que, por seu turno, garantem maior notoriedade mediática, à luz dos critérios editoriais dominantes nas redações. Com efeito, apenas uma mulher alcançou a posição de primeira-ministra – daí decorre a sua inclusão pela Lusa na galeria dos “nomes incontornáveis”. A proporção de ministras é residual, somando, de 1976 a 2011, apenas 27 mulheres (7,1%) contra 353 homens. Na Assembleia da República, desde 1975, apenas quatro mulheres exerceram a função de vice-presidente e cinco foram líderes das bancadas parlamentares. Remonta a 2011 a eleição da primeira mulher como presidente do Parlamento. A liderança dos partidos políticos é assegurada sobretudo por homens, quadro quebrado apenas pontualmente. Manuela Ferreira Leite foi líder do PSD entre 2008 e 2010; em 2011, Maria de Belém Roseira assumiu a presidência do PS; em 2012, o BE elegeu uma coordenação bicéfala e paritária, composta por Catarina Martins e João Semedo.

Os meios de comunicação podem desafiar este estado de coisas? É evidente que sim! Em particular numa data com forte simbolismo democrático como os 40 anos do 25 de Abril, será expectável o reconhecimento do contributo das mulheres para a construção da democracia e do caráter inacabado da revolução no que se refere à igualdade de género em todas as esferas. Malgrado as insuficiências e falhas do sistema, não espero que seja afinal apresentada como incontornável uma desigualdade que empobrece a cidadania e a vivência democrática.

Professora universitária

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