Senna: o piloto que acelerou o Brasil

No dia em que se completam 20 anos da morte de Ayrton Senna, o PÚBLICO revisita a história do brasileiro em Portugal. Conversámos com pessoas que conheceram o piloto e visitámos a casa onde ficava hospedado quando corria no Estoril.

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Ayrton Senna morreu a 1 de Maio de 1994 Jerome Delay/AFP
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A Quinta Penalva, em Sintra, onde Senna ficava alojado quando vinha a Portugal Alexandre Rocha
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Exposição em Ímola MAURO MONTI/AFP
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Tatuagem, outra forma de homenagear o piloto brasileiro REUTERS/Alessandro Garofalo
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Um homem limpa um McLaren MP4/4, em Ímola REUTERS/Alessandro Garofalo
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Um casal visita a campa de Senna REUTERS/Paulo Whitaker
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Jogadores do Corinthians homenageiam Senna REUTERS/Bruno Kelly
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Exposição em Ímola MAURO MONTI/AFP
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MAURO MONTI/AFP

A Quinta Penalva é um pequeno paraíso perdido no meio de Sintra. Para quem a vê do lado de fora do imponente portão de metal, é impossível prever o que aquelas paredes, ocultas por plantas, têm a dizer. Porém, quem está do lado de dentro, percebe que estas não têm ouvidos, apenas contam histórias de personalidades que por lá foram passando. Uma destas histórias, em especial, tem mais destaque que todas as outras.

Nas escadas, que dão acesso ao último andar da casa, uma enorme fotografia de um McLaren MP4/4, assinada pelo campeão em 1988 de Fórmula 1, interpõe-se ao olhar, como se estivesse a dizer: “Ayrton Senna esteve aqui”. Oscar Júnior, funcionário do ex-banqueiro António Braga há mais de 20 anos, explica: “É aqui que o doutor Braga passa a maior parte do seu tempo”. Apesar de toda a residência fazer transparecer, a quem a visita, uma sensação de acolhimento e serenidade, o seu sótão esconde algo de diferente, um especial misticismo.

A divisão é bastante clara. A luz natural, proveniente da janela mais alta da casa, faz prevalecer um ambiente onírico, e as inúmeras fotos pessoais confirmam a premissa inicial de que este é um recinto de memórias. Em perfeito estado, a sobrecâmara possui também uma televisão, um computador, sofás e uma grande variedade de livros, sendo que destes apenas uma escassa selecção se encontra pousada na mesa central.

Curiosamente, no topo de diversas outras obras, ordeiramente posicionadas em cima da mesa, sobressai O herói revelado, escrito por Ernesto Rodrigues (2004), cujo protagonista não é ninguém mais do que o próprio Ayrton Senna da Silva. Entre outros acontecimentos, o autor conta a história do brasileiro naquela mesma quinta, que começou muitos anos antes do trágico dia 1 de Maio de 1994. Hoje, o livro encontra-se fechado, mas as suas palavras nunca foram esquecidas.

“Magic Senna”
Desde cedo, o talento do jovem Ayrton Senna já era comentado em todo o mundo do automobilismo. “Um sujeito que chega à Europa, em 81 ganha tudo, em 82 ganha tudo, não podia ser fraco”, afirma Domingos Piedade, antigo vice-presidente da Mercedes. As nove vitórias consecutivas na Fórmula 3 renderam, inclusive, o título de “Senna-sational” ao piloto e levaram a revista AutoSport a rebaptizar o famoso circuito de Silverstone como “Silvastone”. Como não podia deixar de ser, em 1983 o brasileiro já estava na mira de vários patrocinadores e construtoras da categoria principal.

António Carlos de Almeida Braga, dono da Quinta Penalva, é um dos maiores mecenas do desporto brasileiro, mas nunca chegou a patrocinar Senna. “Eu já estava com o Emerson Fittipaldi [o primeiro campeão brasileiro de Fórmula 1], e não podia ficar com os dois”, explica. Mas o relacionamento entre Braga e Ayrton tornar-se-ia muito mais forte do que qualquer ligação comercial. Naquela época foi o Banco Nacional o primeiro grande colaborador da nova promessa.

Mesmo depois de fazer testes pela Williams, e ser cogitado pela McLaren, foi na Toleman, uma equipa sem recursos para disputar o título, que Senna se estreou na Fórmula 1. Na verdade, antes de o brasileiro entrar, a construtora não havia conquistado um único pódio nos seus três anos de existência. Tal estatística não viria a durar muito tempo. O piloto já havia entrado com intuito de fazer história.

Foi a 3 de Junho de 1984 que, partindo da 13.ª posição, o brasileiro mostrou que era realmente especial. Arrasando os tempos dos McLaren, Williams e Ferrari, Senna voou na chuva no Grande Prémio do Mónaco — percurso que viria a tornar-se a sua marca registada — terminando em segundo lugar. As ultrapassagens a grandes nomes da época, como Keke Rosberg e Niki Lauda, deixaram o mundo surpreendido com o novato, que parecia ter total controlo sob o carro numa corrida em que sete pilotos foram desqualificados por acidentes, incluindo o autor da pole position, Nigel Mansell.

O Grande Prémio terminou mais cedo devido às condições meteorológicas, mas até hoje diz-se que, se tivesse continuado, “Magic Senna” — alcunha atribuída na Europa devido à habilidade no piloto em pisos molhados — teria ultrapassado o francês, e eterno rival, Alain Prost, e registado a sua primeira vitória na Fórmula 1. Apesar de ter conquistado mais dois pódios para a Toleman ainda naquele ano — em Inglaterra e Portugal — o primeiro triunfo do brasileiro só veio a acontecer em 1985 pela Lotus, onde a sua carreira como campeão efectivamente começou.

História em Portugal
O dia 21 de Abril de 1985 foi um dos mais importantes na carreira de Ayrton. Na qualificação para o Grande Prémio de Portugal, o brasileiro já havia surpreendido Prost e Rosberg ao conquistar a primeira pole position da carreira, mas os feitos daquele fim-de-semana não iriam ficar por aí.

Chovia torrencialmente no Estoril. Em virtude da quantidade de água, algumas câmaras só conseguiam visualizar os pilotos quando estavam extremamente próximos. O próprio Senna veio a admitir, mais tarde, que as condições de pilotagem em Portugal estavam muito piores do que no Grande Prémio do Mónaco, no ano anterior. Prova disso é o facto de apenas nove dos 26 pilotos terem completado a corrida naquele dia. “Na verdade, eu não sei como consegui ficar na pista”, assumiu Senna a Dennis Jenkinson, um respeitado cronista de automobilismo, em 1985.

Ainda assim, Ayrton dominou a prova de ponta a ponta. Alain Prost, que havia vencido a primeira corrida da temporada no Brasil, não conseguiu conduzir na chuva, aquaplanou numa recta e ficou incapaz de terminar o Grande Prémio. Senna, isolado, acabou a mais de um minuto de Alboreto (segundo lugar) e chegou a dar uma volta em Tambay (terceiro). Este Grand Slam do brasileiro — atribuído quando um piloto conquista a pole position, fica sempre à frente da prova, faz o melhor tempo e termina em primeiro lugar — assinalou a sua primeira, e única, vitória em Portugal, que deixou o mundo inteiro perplexo e de olhos arregalados.

No entanto, dada a morte do presidente Tancredo Neves, o espectáculo de Ayrton não foi o tema principal das televisões portuguesas naquela noite. A vitória do piloto resumiu-se a um pequeno afago, num dia trágico para o povo brasileiro.

Mais do que um piloto
 “Desde que começou a correr no Estoril ele ficava lá em casa”, explica António Braga, mais conhecido entre os amigos por “Braguinha”. Fanático por desportos, o ex-banqueiro já havia recebido em Sintra personalidades como o tenista Guga e o piloto Emerson Fittipaldi. Naturalmente, Senna também passou a ser convidado quando começou a vir a Portugal. A Quinta Penalva, tranquila, situada a pouco mais de cinco minutos do circuito do Estoril, era o local ideal para o brasileiro se hospedar, o que veio a acontecer muitas vezes.

“Nas vésperas dos Grandes Prémios da Europa ele ficava aqui para treinar”, aponta Oscar, funcionário dos Braga. “Na verdade, era eu que o ia buscar ao aeródromo de Cascais [Tires]. Buscar não, levar o carro, ele é que trazia de volta. O Sr. Braga dizia: ‘Deixa ele dirigir. O cara sabe o que está fazendo’”. E, de facto, sabia. O próprio António Braga admite que “às vezes [Senna] conduzia em contramão e a toda velocidade, no [Honda] NSX. Era absolutamente incrível como nunca batia!”.

Com o passar do tempo, e com a evolução do piloto na Fórmula 1, as estadias em Sintra foram-se tornando mais comuns e, com efeito, a relação de Ayrton com o dono da casa foi-se fortalecendo. “Eu acompanhava-o sempre nas corridas. Era um fenómeno e foi um grande amigo durante toda a minha vida!”, exalta “Braguinha”.

Em Sintra, são várias as lembranças que remontam à época. Na parte de cima da casa, é possível apreciar diversas fotografias dos dois juntos, quer dentro das pistas, quer em momentos de lazer. Já na parte de baixo, uma réplica de ferro do McLaren MP4/4 chamaria a atenção mesmo de quem nunca ouviu falar de Fórmula 1. Neste “templo do desporto”, que rodeia a piscina interior, também estão presentes um quadro com a foto de Ayrton Senna, pensativo no seu monolugar, e uma bicicleta ergométrica, que foi montada pelo próprio piloto. “Tudo está exactamente igual desde há 20 anos”, revela Oscar.

A única coisa que não está tal e qual desde o fatídico 1 de Maio é a réplica do capacete verde e amarelo, comprado em 1994. Quem olha para as cores e as linhas do Brasil, relembra momentos inesquecíveis que o piloto proporcionou. O primeiro lugar em Espanha, no duelo com Nigel Mansell (1986), o triunfo no Japão, que assinalou a primeira vitória de Ayrton Senna na Fórmula 1 na McLaren (1988), o primeiro lugar não contabilizado no mesmo circuito, onde Prost colidiu deliberadamente com o brasileiro para tirá-lo da corrida (1989) e o triunfo só com uma mudança no Brasil (1991), são momentos que não se traduzem em imagens ou palavras.

Mas a carreira ilustre do tricampeão veio a acabar mais cedo do que era esperado no trágico circuito de Ímola. Tudo o que restou foram as lembranças e a saudade.

Senna para sempre
Quando o avião que transportava o corpo chegou ao Brasil, às 5h30 do dia 2 de Maio, cerca de um milhão de pessoas saíram à rua para saudar, pela última vez, Ayrton Senna da Silva. A perda foi tão grande para a nação que próprio Governo declarou três dias de luto oficial e concedeu honras de chefe de Estado.

Estas honrarias não apenas por Senna ser um piloto excepcional, mas porque foi um brasileiro como poucos outros. Sempre com uma bandeira verde e amarela no carro durante as corridas, Ayrton tinha orgulho de ser brasileiro. “As pessoas identificavam-se com ele, viviam em função do domingo de corrida. O brasileiro só casava se não houvesse Grande Prémio”, admitiu Domingos Piedade, que chegou a ser rival e manager do piloto na Europa. “Todo o brasileiro sabe o que fez no dia em que o Ayrton morreu”, concluiu.

Talvez nem todos os brasileiros saibam, mas Oscar com certeza não se esqueceu, era o dia do seu aniversário. “Foi muito triste. Eu admirava o Senna antes mesmo de vir trabalhar para o doutor Braga”, confessou. O próprio “Braguinha” revelou que, para além da amizade, existia uma relação de “admirador para supercampeão” entre ambos.

Aos portugueses, Ayrton Senna também deixou saudade. O jornalista e ex-piloto Francisco Santos está a escrever o seu quarto livro acerca do piloto, que trará “uma análise detalhada do acidente”: “Entrevistei-o variadíssimas vezes. Eram duas personalidades, o Ayrton de dentro e o Ayrton de fora dos circuitos”.

O reconhecimento em Portugal é tão grande que, mesmo passados 20 anos da sua morte, será realizado hoje (13h00), na praça Ayrton Senna, no Estoril, um encontro de fãs em memória, segundo Piedade, do “melhor corredor de todos os tempos”.

É inegável que Senna é e sempre será do Brasil, mas parte da sua história permanece em Portugal.

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