Já não há paredes pintadas com ideias

Menos de quarenta anos depois do PREC já não há palavras de ordem em todas as paredes da rua e essa imagem é já muito distante. O documentário Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril , que se estreia este sábado na RTP 2, lembra-nos como era a vida num sítio em que todos pintavam murais

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Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril
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O realizador Paulo Seabra enric vives-rubio
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Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril

Ninguém bebe leite de uma caneca com a cara de Pedro Passos Coelho, mas no atelier de Paulo Seabra há uma prateleira com copos e canecas com as caras de Ramalho Eanes, Sá Carneiro, ou com o logotipo do Partido Comunista Português. São todos dos anos 70 e 80, da época eufórica que se seguiu ao 25 de Abril. É da propaganda política deste período que fala o documentário Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril , realizado por Paulo Seabra e que se estreia este sábado, às 21h54, na RTP2.

Para além dos copos, canecas e pratinhos com frases como “a terra a quem a trabalha”, Paulo Seabra e Maria Antónia Linhares de Lima, responsável pela pesquisa para o documentário, têm uma caixa cheia de pins com logótipos de todos os partidos e caixinhas de música que tocam a Internacional Comunista. São pormenores naif da época em que se gostava dos brindes, diz Paulo Seabra, mas Maria Antónia Acrescenta acrescenta que era a altura em que a discussão política estava presente na vida das pessoas. “Discutia-se nos cafés com ideias e não apenas para dizer mal dos políticos”, diz.

A relação próxima entre a vida das pessoas e a vida política é bem visível da paisagem de Lisboa nos anos 70 – as paredes estão forradas de cartazes políticos colados uns por cima dos outros: o cartaz seguinte ataca e esconde a mensagem política do anterior, seu adversário. Nas paredes em que não há cartazes, há murais, alguns deles colossais, que são escritos, reescritos e vandalizados.

“Suportes gráficos como cartazes e autocolantes há imensos, muita gente tem. Penso que não erro se disser que não se perdeu quase nada. Os murais perderam-se, não foram devidamente fotografados porque não havia um levantamento técnico aprofundado dos murais”, diz Paulo Seabra lembrando que os murais não eram vistos em primeiro lugar com um objecto artístico ou documental, mas como uma forma de acção política.

As imagens de murais em Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril pertencem ao arquivo da RTP e não mostram os andaimes e os três ou quatro artistas de máscara na cara, em frente a uma parede a fazer graffitis que estamos habituados a ver nos dias de hoje. As filmagens da RTP dos anos 1970 têm uma atmosfera de comunidade e de celebração: muitas pessoas, algumas delas crianças, pousam para serem pintadas na parede e pintam mensagens políticas partidárias, que não são coisas distantes. “Hoje política já não tem interesse. O Estado está mais interessado no nosso dinheiro do que naquilo que nós pensamos”, diz Paulo Seabra.

Talvez por isso praticamente nada reste dos murais dos anos 1970 e 1980 – em zonas de maior tráfego foram completamente abolidos e restam apenas alguns em zonas mais interiores da cidade de Lisboa, como no Bairro de Sapadores, diz o realizador. “Na avenida Marechal Gomes da Costa havia um mural de qualidade estética muito desenvolvida e que foi destruído, foi pintado por uma questão de limpeza sem critério”, conta sobre um dos murais que aparece no final do documentário.

Apesar de muitas das pessoas com quem falou para este trabalho – historiadores, críticos de arte, designers, cartoonistas – justificarem a limpeza generalizada dos murais com “a ordem natural das coisas”, Paulo Seabra está convencido de que o fim daquelas obras de arte e propaganda política está ligado à “obsessão do século XXI com a higienização. Foi uma preocupação que a cidade de Lisboa começou a ter com as obras de Expo 98”, diz o realizador. Esta limpeza das paredes acontece a par de um estreitamento do espectro partidário: PSD e PS começam a alternar entre si a governação do país e vai-se diluindo a variedade de partidos nascidos com o 25 de Abril.

 “As paredes da 24 de Julho têm uma comunicação muito forte e tinham uns murais que funcionavam muito bem por isso. É claro que agora têm publicidade de grandes marcas”, diz o realizador sobre a conversão dos melhores pontos de divulgação de mensagens políticas em pontos de publicidade.

Foi relativamente fácil destruir estas pinturas porque as obras não estavam assinadas. “Se tivessem a assinatura de um nome consagrado da arte – como hoje acontece com a street art - isto não teria acontecido facilmente”. Havia uma noção de algo comunitário e a arte, ao contrário do que se passa hoje com o graffito, não era o primeiro objectivo. O mural era feito para uma mensagem política e a estética era muitas vezes inspirada em modelos soviéticos, chineses ou albaneses: “a iconografia era bastante infantil, académica, para não dizer reaccionária, e isso acontecia em todos os partidos da esquerda e extrema esquerda”, diz o designer Jorge Silva no documentário, apontando como exemplo oposto, a iconografia do Maio de 1968, completamente inovadora e percussora da street art.

Tal como os Murais, o design dos cartazes não tinha muitas vezes assinatura. “Há um total desapego da autoria por parte do artista que preferia fazer um trabalho que representa ideias e programas políticos”, diz no documentário o designer Henrique Cayatte. Hoje alguns dos artistas começam a assumir a autoria dos primeiros gráficos dos partidos, como é o caso do cartoonista Augusto Cid, que conta no documentário como desenhou o logotipo do PSD, ou o escultor Charters de Almeida, que criou o do CDS. O autor dos primeiros símbolos é muitas vezes desconhecido dos próprios partidos: Paulo Seabra diz que não há nenhuma informação no arquivo do PS acerca deste assunto, e que o CDS só vai saber quem é o autor das duas setas que apontam para um círculo central com este documentário.

Ao longo de quase uma hora de filme, há algo da estética kitsch e ingénua da propaganda da época que passa para Estética, Propaganda e Utopia no Portugal do 25 de Abril. Paulo Seabra diz que sofreu uma influência directa e que a necessidade de mostrar o muito material recolhido em pouco tempo levou-o a criar uma sobreposição rápida de imagens que tem muito a ver com os cartazes que se colavam em camadas, uns por cima dos outros.

O ambiente português dos anos 1970 e 1980 está também na banda sonora que, como tudo o resto, sublinha Paulo Seabra, não foi escolhido ao acaso. Evitou as músicas de intervenção e escolheu cantores como Tonicha ou António Calvário sempre para ilustrar sonoramente a mensagem das imagens. Logo no início, sobre as imagens do 25 de Abril e os primeiros cartazes com palavras de liberdade, os Duo Ouro Negro cantam Agora eu vou ser feliz, uma adaptação livre ao português de I Wanna Hold your Hand dos Beatles – importada, tal como a estética da propaganda. No final, o tema italiano Paroles, Paroles, cantado em português, aparece como a conclusão sobre o tempo eufórico que acabou e sobre a mensagem política que nos quer deixar “perfilados de medo”, diz Fernando Rosas citando Alexandre O’neill: “palavras frágeis, palavras fáceis que se desdizem e contradizem.”

 

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