Bastidores

Nos bastidores não se traçam desígnios nacionais, como o salário mínimo; mas é lá que pousa o Governo.

Foi assim desde o início. O governo de Gaspar abraçou (aumentando-o) o programa da troika. Fê-lo seu e tornou-se um deles. Isto é: Gaspar, desde o início, avaliação atrás de avaliação, nunca se sentou à mesa do lado de cá, o do país que representa. Esteve sempre onde está parcialmente agora, esteve sempre numa quarta cadeira do lado de lá da mesa. O governo de Gaspar é, assim, um Governo credor e não um Governo devedor.

A adesão cega à estratégia de empobrecimento, ainda por explicar, ancorada numa escola de pensamento que transformou jornalistas em economistas súbitos, justificou o impensável em democracia: um programa que nada ajustou e tudo cortou.

Atropelando com uma retórica ignorante órgãos de soberania como o Tribunal Constitucional, em vez de lhe agradecer o aumento da procura interna como consequência da invalidação do roubo de subsídios e de pensões, o governo de Gaspar foi seguindo imparável.

Para isso, enveredou pela estratégia intencional da comunicação que confunde: um dia um anúncio; noutro o seu desmentido; ao terceiro relatórios internacionais a confirmarem o que fora, no primeiro anúncio, um teste à “mensagem”.

Os portugueses têm sido como os carros que se testam uma e outra vez até à decisão final de comprar um “acima das suas possibilidades”.

Tudo falhou e Gaspar, ou quem agora fale em vez dele, continua na mesma: não houve uma reforma do Estado; não houve qualquer ajustamento. A única estratégia foi cortar.

Nesse cortar, hipotecaram por muito mais tempo o futuro que se exigia mais encurtado no alívio, porque a crise estalou em 2008 e não merecemos ouvir todos os dias oráculos propositalmente contraditórios de novos cortes, que afinal não, que afinal sim.

Engana-se Gaspar, ou quem lá está em vez dele, se pensa que uma conferência de Portas e da ministra das Finanças há dois meses, seguida das últimas notícias, baralha alguém.

Porque em cada alguém há a escola pública, o SNS, os serviços públicos, os impostos, os salários, as pensões, os impostos indiretos, os emigrados, os desempregados dentro das estatísticas, os desempregados fora das estatísticas, gente que sabe o que aconteceu sem precisar de ouvir Gaspar ou a ministra das Finanças ou Portas ou, claro, um primeiro-ministro entrevistado na lua.

Porque em cada alguém há já uma perceção clara de que o Governo que nos desgraçou para muitos anos – e que pede consensos alargados em matéria de mais austeridade punitiva – só tem por exigível o que vá contratando com a troika. Pode a dívida ter-se tornado insustentável. É indiferente. Porque Gaspar, ou quem cá ficou por ele, está do lado de lá da mesa, e cumpre “o” contrato, incumprindo sem aflição o maior dos contratos, esse que une os cidadãos ao Estado, essa pessoa de bem, como se ensina.

Vamos na 11.ª avaliação e não interessa ir a cada palavrinha ouvida. Interessa e revolta a certeza da estratégia dos bastidores: os portugueses não têm o direito de saber das negociações (há eleições europeias); os salários vão ser cortados, mais e definitivamente; as pensões vão ser cortadas, mais e definitivamente; mais e mais serviços públicos vão ser encerrados (caso das Finanças); o “programa” foi estendido, pese o relógio-CDS-PP-PP; vem aí mais humilhação no mundo do trabalho, porque os teóricos sabem que leis laborais ultraflexibilizadas são boas para a “competitividade” (não estudam Direito e Economia comparados, paciência).

Isto é um mistério. Gostava de ouvir uma entrevista a Gaspar, em vez da que ouvi ao senhor frases-feitas Passos Coelho (“a Segurança Social é insustentável” é das propagandas mais comuns).

Nos bastidores não se traçam desígnios nacionais, como o salário mínimo; mas é lá que pousa o Governo.

Deputada do PS

Sugerir correcção
Comentar