Os tiros surdos de Abril que ainda ecoam no Portugal democrático

O Teatro da Cornucópia faz dos 40 anos do 25 de Abril o retrato de uma cidade contaminada pela mentira. Íon, de Eurípides, que estreia a 24 de Abril, esta quinta-feira, no teatro São Luiz, ao lado da antiga sede da PIDE/DGS, quer transformar a palavra esperança num verbo: acção.

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Luís Gouveia Monteiro
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Do palco do São Luiz não se ouvem os tiros que mataram os quatro homens na Rua António Maria Cardoso, onde era a sede da PIDE/DGS, a polícia política do regime que caiu a 25 de Abril de 1974. Mas na memória de Luís Miguel Cintra é o som das balas a atingir os corpos que, quarenta anos depois, ainda ouve.

 E no palco, paredes coladas à antiga sede da PIDE, hoje condomínio de luxo, Íon, a tragédia de Eurípides escrita há 25 séculos que esta quinta-feira se estreia (até 4 de Maio), é o mais próximo que o actor e encenador conseguiu chegar do sentimento de esperança misturado com revolta que sentiu em 1974. A revolução só dura um instante. “Não queria festa, não queria celebrar, queria, e é se conseguisse, talvez dar que pensar”, escreve o encenador no texto de apresentação desta tragédia de Eurípides, que, segundo a base de dados do Centro de Estudos de Teatro é a primeira vez que é apresentada em Portugal.

E diz: “Neste momento seria, creio, quase impossível festejar com alegria e não por descargo de consciência, os 40 anos do 25 de Abril, uns pelo que tem tardado a apagar-se, outros porque tão depressa acabou. E isto sabendo que muita coisa mudou e com certeza, alguma para muito melhor.”

Luís Miguel Cintra “andava por ali”, como escreve, entre o Largo do Carmo e a Rua António Maria Cardoso, há 40 anos como hoje, mas Íon, texto sobre a recusa em se adaptar e perverter o sentido, e significado, da felicidade, é, para si, a transformação da esperança em verbo, em acção. “Se reconhecemos, por exemplo uma progressiva responsabilização individual na mentalidade dos mais novos que é razão para termos direito à esperança, eu sinto que a virtude da lealdade se tornou quase sinónimo de inépcia, de desajuste com o nosso tempo, e sendo a inteligência, como aprendi, a capacidade de lidar com novas situações, sinónimo de estupidez. Eu até defendo que a nossa relação actual com a vida está doente de tão abstracta e virtual.”

Cintra fez 25 anos quatro dias depois do “dia inicial inteiro e limpo”, como escreveu Sophia de Mello Breyner. Meses depois, em Julho, no primeiro espectáculo que o Teatro da Cornucópia estreou após a revolução, Terror e Miséria no Terceiro Reich, de Brecht, peça até então proibida, a companhia, no seu manifesto escreveu que a escolha queria pensar a História. E o teatro. “Queremos um espectáculo claro, recusando todos os sensacionalismos que por tradição têm sido pertença do espectáculo teatral (...) e queremos que seja visto para que seja pensado e sentido, ou seja, para que seja criticado. Para quê?”

Celebrar, por isso, os 40 anos do 25 de Abril era, para o Teatro da Cornucópia, que dirige, oportunidade para falar à cidade. Ou sobre ela. E a cidade, afinal, porque na sua etimologia grega polis (cidade-estado) está também na origem da palavras politiké (política em geral) e politikós (dos cidadãos, pertencente aos cidadãos), que, explica, “estenderam-se ao latim politicus e chegaram às línguas europeias modernas através do francês politique que, em 1265 já era definida nesse idioma como ‘ciência do governo dos Estados’”.

Já havia sido assim em 2010, quando, em co-produção com o teatro São Luiz, apresentou, A Cidade, colagem de textos de Aristófanes. Um diálogo com a responsabilidade do teatro no centro da cidade. Mas onde antes se ria, agora, porque o teatro é sempre invadido pela vida e nem sempre é só metáfora, as palavras amargas ecoam de outra forma, talvez menos cínicas, certamente mais graves. “Senti que a peça, que não sei se Shakespeare teria lido, mas faz lembrar o Hamlet, passava pelos mesmos temas de reflexão a que o nosso envelhecimento pode conduzir. O reino de Atenas está decadente. Naquela sagrada família, em que o filho de um Deus é gerado por uma mortal, e para ser rei renuncia à sua natureza de filho de Deus, espezinhando a sua mãe, e gerador de um destino de rei que a gerou, duas ideias são o fulcro da intriga: a crise de fé: os deuses já não são o que eram, em que acreditaremos reinando na cidade da deusa da razão, Atena? A outra ideia, de que decorre um retrocesso, é a de que a mentira é o mal.” Este é, afinal, mais do que um texto encenado, um espectáculo que mostra a ferida nunca sarada, nem após 40 anos de democracia: “a da necessidade da mentira nos cargos de poder”.

E então entra Íon, vestido como um soldado de Abril, como quase sempre aconteceu de cada vez que a Cornucópia apresentou soldados em palco (Grande Paz, Edward Bond, 1987; Sertório, Corneille, 1997; Cimbelino, Shakespeare, 2000; Miserere, Gil Vicente, 2010) num corpo sem biografia, o do actor Guilherme Gomes, uma estreia na companhia. É nele – na defesa segura que faz dos seus valores e no modo comovente como expõe as suas dúvidas – que se depositam as esperanças de que não se adapte, que não se sujeite nem se resigne. É dele, acredita Luís Miguel Cintra, que se espera que algo de diferente possa surgir. Actor e personagem, indivíduo e geração, corpo e metáfora, uma acumulação de expectativas que as diferentes referências textuais, visuais e sonoras vão materializando.

A bandeira de Portugal estilizada como pano de boca de cena, o arrastar dos pés na terra da Grândola de Zeca Afonso, a Traviata que se ouviu no Coliseu dos Recreios, cantada por Joan Sutherland, a 24 de Abril de 1974, as palavras de Pier Paolo Pasolini, morto em 1975, a pedir ao jovem Gennariello que cuidasse de se inscrever na História sem se deixar comprimir pelo rolo compressor do tempo. Tudo isto no palco, exposto ou escondido porque, escreve o encenador: “Gosto que a construção de um espectáculo utilize o máximo de materiais à nossa disposição, todos os níveis de leitura que nos suscitou, mesmo as zonas escuras que eventualmente não conseguimos entender, e de o fazer com os elementos que temos e de que podemos dispor.”

Íon revelar-se-á, afinal, filho da mesma mulher que o tentou matar. A metáfora é longa mas o pequeno busto da República que mal se vê, escondido no canto direito do palco, é a imagem de Creusa (Luísa Cruz), ao mesmo tempo República e Nossa Senhora, mãe e madrasta, mulher orgulhosa e quase assassina. Íon, o jovem soldado, como a esperança e a revolução. Creusa como a República que abandonou a democracia e demorou anos a reconhecer o erro. E, na cena chamada “Cidade ex-maquina” (quando os deuses intervêm num momento de impasse, seja moral ou narrativo), diz o Velho: “Os quatro filhos que dele [Íon] nascerão de um só tronco darão o nome à terra e aos povos da região distribuídos em tribos, que habitam o meu rochedo.” E se estes quatro filhos forem, afinal, os quatro partidos fundadores da democracia: PPD/PSD, PS, PC, CDS?

“Percebi, ao pôr sobre a mesa elementos das duas épocas que se confrontam neste palco, a “revolução dos cravos” da 2ª metade do século XX e a Atenas do século V, ligadas pela ideia comum de Democracia, e em cada uma delas links internos para os respectivos passados, o da implantação da República e o 28 de Maio que lhe pôs fim, e na antiga Atenas, o tempo anterior à Democracia, quando ainda havia reis, tempo passado também para Eurípides e para o público da sua estreia, o como são tempos terrivelmente incompatíveis e quanto o choque da decepção democrática nos aguçava a compreensão do texto antigo. Estou habituado a pensar que representar os clássicos nos ajuda a compreender o presente. Neste caso convenci-me do contrário. É difícil não tornar em presente os textos passados que interiorizamos ao voltar a representá-los. É a memória do 25 de Abril que nos ajuda a entender Eurípides.”

Por isso, Íon, o rapaz-soldado, filho preterido e filho desejado, naquilo que combinará de Cristo, Salgueiro Maia e o homem comum que ajudou, anonimamente a construir Portugal, é a memória de um tempo que prometia ser diferente. Cita-se Sophia: “Celebrámos a vitória: a treva/ Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos/ O grito rouco do coro purificou a cidade” mas Cintra avisa-nos que “não há violência cénica que possa competir com o confronto da memória com o presente.” No palco (como na vida, aliás) podem não se ouvir os tiros, mas isso não significa que se devam esquecer os mortos.

 

 

 

 

 

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