No coração das trevas americanas

Foto
cortesia fundação ROBERT Mapplethorpe

Em Paris, duas exposições contrastantes sobre a mesma América. A de Robert Mapplethorpe e os seus corpos nus. A de Robert Adams e as suas paisagens despidas. Diálogos provocados e provocatórios sobre um país em fuga

A arma, sem a sabermos se carregada, aponta na direcção da objectiva. Aponta na nossa direcção. E o rosto marcado e cavado de William S. Burroughs, destaca-se da parede de retratos, invertendo a hierarquia entre quem observa aqueles retratos em tempos de selfies. “Nada existe antes de ser observado”, escreveu o autor de Naked Lunch. E o seu olhar cruzado com o nosso através da câmara de Robert Mapplethorpe, pergunta se o compreendemos quando diz que “um artista está a fazer algo existir quando o observa e a sua esperança é que outros a façam existir também quando a observam”.

Na parede de retratos é a arma que se distingue, do mesmo modo que nas paredes do Grand Palais, cheias de corpos nu e de flores, de apartamentos vazios que se preenchem com sorrisos enormes e olhos vidrados, o que releva da primeira retrospectiva de Robert Mapplethorpe em Paris após a sua morte, em 1989, é a força de um olhar que parece esculpir os rostos. E então desconfiamos se os sulcos do rosto de Burroughs não serão senão a construção de que o novelista falava e que o fotógrafo ambicionou: “Se tivesse nascido há cem ou duzentos anos, teria sido escultor, mas a fotografia é um meio mais veloz de observar, de esculpir”. Mapplethorpe (1946-1989), o fotógrafo-pornográfico, o homem que dizia que “se bem canalizada, a energia do sexo é mais forte do que a da arte”, olhava para o torso de alguém e o que via “era uma verdadeira escultura”. Compreendemos então que o que era sexo é afinal carne e o que era corpo é afinal transcendência. “Fui um rapaz católico que ia à missa todos os domingos. A igreja exerce uma certa magia e mistério numa criança. Isso ainda se percebe no modo como organizo as coisas. São sempre pequenos altares”. Altares ao corpo que são altares a um hedonismo que construiu a Nova Iorque que queria definir a América que morria no Vietname e que, em reacção ou em rejeição, se libertava através da sexualidade. É uma espécie de princípio de fé: “Procuro a perfeição na forma. Nos retratos. Através dos sexos. Com as flores.”

Flores para os mortos, portanto. Da América que desaparecia para a América que não sabia o que era. “Vim da América suburbana. Era um ambiente seguro, e um bom sítio de onde se vir na medida em que era um bom sítio do qual vir embora”. Um ano antes de morrer, Mapplethorpe dizia à ArtNews que a palavra “chocante” o incomodava: “Estou à procura do inesperado. Estou à procura do que nunca vi. Podia tirar aquelas fotografias. Senti-me obrigado a fazê-lo”.



Panorâmica e grande plano

Esta ideia de inevitabilidade, de missão ou função, existe na obra de Mapplethorpe, de Queens, como existe no modo como Robert Adams, nascido em 1937 em New Jersey – ou seja, Nova Iorque sempre como epicentro, ponto de fuga e lugar de partida, de uma certa América – olha para a paisagem, e para aqueles que a transformam. Separadas por centenas de metros, as retrospectivas de Mapplethorpe no Grand Palais, e de Adams, na Jeu de Paume, dialogam de modo inusitado. O que em Mapplethorpe é encontro, em Adams é fuga. O que procuram é o mesmo: a América. Adams a transformar o anónimo em História, Mapplethorpe a fazer da História a banalidade anónima.

Um e outro, em modos diferentes de conceber o seu trabalho, seja uma oportunidade que se transformou numa missão, seja um olhar formado pelo acaso, criam perspectivas que se tornam, afinal, o discurso que temos como oficioso de realidades demasiado amplas para poderem ser contidas num enquadramento. Entre o silêncio das paisagens do interior norte-americano e o ensurdecedor movimento que se imagina nos interiores nova-iorquinos vai a distância de um país a braços com um processo de construção identitária à margem de um século que, para a História, ficou como o da sua hegemonia. Entre a panorâmica de Adams e o grande plano de Mapplethorpe fica o discurso sobre uma América de sombras, que se esconde atrás do ruído, venha ele das máquinas que ainda operam em Denver (Adams) ou dos quartos do lado do Chelsea Hotel (Mapplethorpe). Os corpos são os mesmos. Nos dinners perdidos nas auto-estradas (Adams) e nas festas de drogas e sexo (Mapplethorpe) o que procuram, poeticamente, é aquilo que Jack Kerouack escreveu em Pela Estrada Fora: “O que me está guardado na direcção que não tomo?”

Para Adams a paisagem é aquilo que a América quer compreender e por isso a destrói. Incomodam-no as árvores arrancadas, como a Mapplethorpe interessa a justaposição dos corpos nas flores. “Quando exponho, coloco uma flor, e depois uma pila, e depois um retrato, de modo a que se perceba que são a mesma coisa” (Mapplethorpe). “Porquê tirar esta fotografia, perguntam-me. A questão parece simples mas levanta um problema difícil de resolver: porque não deveríamos abrir os olhos apenas nos lugares que permanecem intocáveis e virgens, como os parques nacionais?” (Adams).

Quando Adams cita a poeta russa Anna Akhmatova, fala também do que é perturbador (ou assim era entendido) em Mapplethorpe: “O miraculoso habita também as putridas ruínas”. A América, sempre a América, porque os americanos, sempre os americanos. A imagem e o que com ela fazemos.

O jornal Libération fala, a propósito de Adams, da “coerência de uma obra paciente, construída ao correr do tempo, livro por livro, série por série”, como se captasse, a cada fotografia, o processo de erosão de um espaço que é também o processo de erosão de uma identidade. “Tendemos a definir uma paisagem em termos de ausência: olhamos para o mapa para ver onde falta chegar ou para encontrar alguma coisa”, disse Adams a propósito da série As Planícies (1965-1973). “Nessa paisagem, o mistério é uma certeza, e é eloquente. A toda a volta, o silêncio. Se atravessarem uma planície, saiam da auto-estrada, encontrem uma pequena estrada onde possam andar e ouçam”.

Ao fixar, não é de presente que Adams fala; é de desaparecimento e de memória. Guarda o tempo inscrevendo o seu trabalho que se parte da paisagem não a forma. O lugar onde vivemos, título da exposição, presta-se a essa ideia de viagem interior dentro de um território sem fronteira aparente. Ela não se vê nas fotografias porque, como diria Rimbaud, o horizonte é o ponto onde o céu e a terra se tocam. Também nas fotografias de Adams esse território “onde” vivemos surge como o lugar “onde” vivemos a experiência. Uma experiência que observa e dialoga a partir dos mesmos tópicos que faziam a fotografia nas décadas de 1960 e 1970, as falésias, as cascatas, as montanhas. Ou seja, o primitivismo possível na América atirada para a velocidade da História, sem passado que não fosse o das rochas. E então, do mesmo modo que os poetas beatnicks que Mapplethorpe fotografou saíram das suas casas que chamavam de burguesas sem terem classe social na qual viver, para a enorme paisagem americana, ensaiando no diálogo ancestral um modo de projectar um destino ou uma missão, também Adams observa “o mito nacional” que é a paisagem americana para “de maneira factual se dar conta das suas mutações”. E nesse dar conta, como lhe chama o Libération, dar forma romanesca à fotografia americana. Adams: “Terá a geografia da região conservado uma força capaz de nos estruturar como estruturou outros antes de nós?” 

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