As portas giratórias entre ficção e realidade

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Claire Simon, Herói Independente no IndiLisboa: porta de entrada na obra de uma realizadora que tem explorado, com uma consistência nem por isso muito comum, as “portas giratórias” que fazem a ficção comunicar com o documentário.

Francesa, nascida em 1955, Claire Simon é a cineasta em retrospectiva na edição deste ano do Festival IndieLisboa, quando se retoma a secção Herói Independente. Não se trata de uma realizadora muito divulgada em Portugal, país a cujo circuito comercial dela apenas chegou um filme, Les Bureaux de Dieu (Os Escritórios de Deus), com data de 2008, ainda assim um filme que permitia perceber, com relativa clareza, o peculiar vínculo entre documentário e ficção que é uma das características essenciais da obra de Claire, onde não raras vezes a ficção é trabalhada enquanto “reconstituição” do documento e do documentário. Mas Os Escritórios de Deus nem está incluído na retrospectiva do IndieLisboa, sublinhando que é fundamentalmente uma descoberta o que se propõe, a da obra de uma realizadora que filma desde os anos 70 (curtas-metragens) e que estreou as suas primeiras longas no final dos anos 80, contabilizando hoje cerca de uma dezena – seis das quais exibidas no Festival. Já agora, é mais do que simples curiosidade registar uma relação muito concreta entre Claire Simon e o cinema português, visto que foi ela, montadora por formação, quem montou, no final da década de 1980, o Agosto de Jorge Silva Melo.

Os seus filmes mais recentes, estreados em 2013, são dois filmes que se diriam “gémeos”. Gare du Nord e Géographie Humaine, o segundo a funcionar como uma espécie de sombra documental do primeiro, embora “sombras documentais” não faltem intrinsecamente a Gare du Nord, nasceram do mesmo processo: uma investigação sobre um dos lugares de convergência mais frenéticos e mais intensamente frequentados de Paris, a estação de comboios que se chama Gare du Nord. Se Gare du Nord (filme que abriu ontem o IndieLisboa e que tem ainda prevista uma sessão no dia 1. S. Jorge, às 15h), tem um princípio ficcional, a relação entre um estudante de sociologia que ali conduz a sua própria investigação para a tese que prepara e uma mulher mais velha, professora de história e doente de cancro, Géographie Humaine (29, 21h, Campo Pequeno; 1 Maio, 21h30, Campo Pequeno), centra-se no que no outro filme fica à margem da ficção, os lojistas e trabalhadores da estação, os que por ali passam.

“É um lugar peculiar e bastante significativo de como se vive hoje numa grande cidade”, conta Claire Simon em conversa telefónica, mencionando a estação como um grande desconhecido não só para os passageiros que ali passam apressadamente todos os dias, mas mesmo para muitos dos que lá trabalham, demasiado metidos nas suas “bolhas” respectivas para conhecerem bem o lugar.

A intenção de fazer um par de filmes não constava do projecto inicial, mas “depois de seis meses a estudar a lugar”, a estabelecer e a ouvir muitas conversas para “procurar diálogos”, Claire convenceu-se de que havia ali matéria que justificava um tratamento complementar, e assim chegou a Géographie Humaines. Como ela própria diz, “Géographie Humaines é o mesmo filme que Gare du Nord, só que feito de outra maneira”.

Notamos que o seu tratamento da Gare du Nord tem muitos pontos de contacto com o método do americano Frederick Wiseman, que habitualmente trabalha a partir de grandes lugares, muito precisos e microcósmicos. Claire Simon, que declara a sua “enorme admiração” pelos filmes do americano, concorda, e até acrescenta que mencionou a Wiseman (que tem passado bastante tempo em Paris nos últimos anos, a filmar o Ópera ou o Crazy Horse) o seu projecto de filme sobre a Gare du Nord, e que ele a incentivou, “era uma ideia excelente”. Mas, acrescenta a realizadora, “as similitudes param aí”, Gare du Nord nunca poderia ser um filme de Wiseman, “que nunca imiscuiria um princípio ficcional dentro do documentário”, e que “provavelmente, dado o seu interesse pelo carácter institucional e organizativo do que toma por objecto, em vez de fazer um filme sobre a Gare du Nord faria uma filme sobre os SNCF (os caminhos de ferro franceses)”.

O lugar ou a ideia?

E para Claire Simon o que vem primeiro? Um lugar, a partir do qual o filme se constrói; ou uma ideia, que depois procura um lugar para se construir? Não tem que ser sempre assim, mas “neste caso foi mesmo o lugar”. E o que “o lugar continha dentro de sim”, a espécie de bolsa temática que ele representa, a sua condição de plataforma de observação da vida contemporânea. “É o lugar ideal para medir o pulso a uma das circunstâncias contemporâneas mais prementes, como a mobilidade constante, a espécie de nomadismo que marca as vidas de muita gente, e em particular dos imigrantes”.

Se há um tema dominante do filme, diz ela, esse tema é “o exílio”. Mas a força da Gare du Nord enquanto lugar, continua, está também na “radicalidade”, a “radicalidade daquilo que existe”, e são essas histórias, “radicais” porque “existem”, que alimentam o filme. Mas também o seu relato, porque Gare du Nord, dando voz a inúmeras personagens, é também um filme sobre “a projecção da ficção” de cada um, a projecção de olhares individuais “sobre os outros e as vidas dos outros”.

Claire Simon não esconde que a nouvelle vague, Godard em particular, foi um dos caminhos que a conduziram ao cinema. Mas acredita trabalhar com “um motor diferente”. E dá o exemplo da Paris da nouvelle vague, que segundo ela era uma Paris que “não existe realmente”, era uma construção, “um reflexo de um mundo muito próprio mas também muito romantizado”. O seu olhar, diz, acredita-se mais próximo da preocupação etnográfica de alguém como Jean Rouch, que até tem um pequeno filme (um episódio do filme de conjunto Paris vu Par..., nos anos 60) igualmente chamado Gare du Nord e filmado naquela estação. No seu filme, prossegue Claire Simon, “espera que se veja outra Paris, e sobretudo outro tipo de olhar sobre Paris”, sem que isso implique esquecer as reverberações “mitológicas”. Porque vê a Gare de Nord também como “um lugar mitológico”, “inesgotável”, e “habitado por fantasmas”, onde “a morte está sempre presente” (e daí a doença que aflige a protagonista feminina, interpretada por Nicole Garcia, sinalização dessa presença insidiosa da morte ou da sua ameaça).

Com a sua formação de montadora, pertence àquele grupo de cineastas (como, de certa forma, Wiseman) que filma sabendo que só na fase da montagem é que vai perceber e decidir que filme tem entre mãos? A realizadora responde dizendo que está hoje “mais próxima” desta maneira de trabalhar do que no passado. Conta como costumava basear-se no plano-sequência, que implica sempre uma ideia de montagem no momento da rodagem, de “montagem na câmara” como diziam os clássicos. Hoje oferece-se outra liberdade, e refere muito explicitamente que Gare du Nord foi “um filme encontrado na montagem”, porque mesmo a ficção deixava todas as possibilidades em aberto: “Filmei sem uma narrativa fechada ou estruturada, o que tinha era basicamente um sistema narrativo, um método e uma maneira de filmar”.

Gare du Nord será por certo um dos melhores filmes de Claire Simon, e uma óptima porta de entrada na obra de uma realizadora que tem explorado, com uma consistência nem por isso muito comum, as “portas giratórias” que fazem a ficção comunicar com o documentário. Afinal de contas, Claire Simon é uma realizadora que se declara, enquanto cinéfila, dividida, e que gosta tanto “de Wiseman como de Robert Bresson, de Alfred Hitchcock como de Robert Kramer”…

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