O museu de arqueologia tem uma exposição debaixo de água

Há 30 anos que se começou a investigar o que há no fundo do mar em Portugal. A exposição O Tempo Resgatado ao Mar faz o resumo destas décadas e quer lembrar que o património guardado pelo mar é um ponto fundamental do debate sobre este recurso natural.

O Tempo Resgatado ao Mar é assim espaço para a relação do mar com o homem e com os objectos por ele produzidos
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O Tempo Resgatado ao Mar é assim espaço para a relação do mar com o homem e com os objectos por ele produzidos José Paulo Ruas/Direcção-Geral do Património Cultural
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Quando se passa a primeira arcada azul escuro é como entrar em apneia, como quando se está debaixo de água e as imagens são mais lentas e os sons menos nítidos e mais profundos. Não é só por causa das paredes de tom escuro (que durante o percurso vão ficando mais claras), mas especialmente por causa do vídeo do artista Nelton Pellenz, Azul Profundo, que nos dá a impressão de uma entrada no mar. É isso que quer O Tempo Resgatado ao Mar, exposição patente até ao final do ano no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa: mergulhar-nos num mar que conserva património e que é uma porta de entrada noutras Eras.

A exposição reúne 30 anos de arqueologia subaquática em Portugal – uma actividade que começou a ser estruturada e leccionada nas universidades nos anos 1980. Mostra peças, algumas delas expostas pela primeira vez, recolhidas em ambientes marítimos, fluviais ou mesmo húmidos, como grutas, em todo o território nacional. As peças estão dispostas por ordem cronológica e agrupadas segundo o lugar em que foram encontradas, cobrindo o período histórico desde a época pré-romana ao século XX.

À entrada, enquanto ouvimos os barulhos subaquáticos do vídeo de Pallenz, olhamos de frente para uma canoa, um achado furtuito no rio Lima. Tem uma simplicidade rudimentar, sem ornamentos, só a madeira, as linhas essenciais de uma piroga e a falta de um pedaço ou outro. No entanto, no contexto da exposição ganha um valor de obra de arte: posta ao nível do chão, dentro de uma vitrine profunda, com fundo escuro e que do seu topo até à peça tem escrito o nome da exposição. “É como se estivesse posta no fundo do mar”, diz Maria Amélia Fernandes, coordenadora da exposição.

Apesar da sua simplicidade, é o mote para esta mostra. “É a figura convite em que as pessoas podem entrar para fazer esta viagem”, diz António Carvalho, director do Museu Nacional de Arqueologia. Esta canoa, um objecto que expressa uma ligação intemporal e universal com o mar, diz Maria Amélia, já que é reconhecido por qualquer pessoa de qualquer lugar, tem além disso grande relevância arqueológica – é uma peça do século VII, rara em Portugal e em qualquer parte do mundo e que confirma aquela zona do rio Lima como lugar ancestral de travessia.

Depois de ser encontrada, em 1996, ficou até 2013 imergida numa solução aquosa por falta de meios adequados à sua secagem em Portugal. É necessário um tratamento cuidado destas peças depois de retiradas da água porque a mudança do ambiente aquoso para o ambiente seco é brusca e danifica a madeira. “Foi descoberta uma outra piroga no Lima e deixada a secar [por quem a encontrou] ao sol. Ficou toda torcida”, conta Maria Amélia. Em 2013, o Museu Nacional de Arqueologia conseguiu fazer uma parceria com o espanhol Museo Nacional de Arqueología Subacuática, em Cartagena, que com recursos caros e muito específicos para este tipo de recuperações, secaram a canoa por liofilização, um processo de desidratação que durou três semanas. “Inicialmente pensaram que o processo ia levar mais tempo. Também para eles foi uma experiência nova, nunca tinham tratado uma peça destas”, diz Maria Amélia.

Cápsulas do tempo
Estes pormenores técnicos e científicos convivem em O Tempo Resgatado ao Mar com a informação mais essencial sobre a arqueologia subaquática para mostrar, através dos artefactos encontrados, mas também de vídeos, gravuras e pinturas, como trabalha esta disciplina. “Desmistifica-se a ideia da recolha de objectos de proveniência submersa de forma arbitrária ou de caça ao tesouro”, escreve no catálogo da exposição Adolfo Silveira Martins, comissário científico da exposição, lembrando que é mais comum o público conseguir reconhecer uma escavação arqueológica em terra que uma subaquática.

Esta é uma das razões porque, segundo António Carvalho, O Tempo Resgatado ao Mar não tem um só público alvo. O director do Museu diz sentir igual entusiasmo quando guia uma visita a esta exposição a um historiador, a um grupo de portugueses ou a uma delegação de estrangeiros, como os romenos que, diz, se sentiram maravilhados com este mundo do mar, que associam imediatamente a Portugal, e a que não têm tão grande acesso no seu país de origem.

Além do aspecto científico, muito presente, esta é “uma exposição bonita”, diz, sublinhando o grande cuidado em criar um ambiente cénico, em que a luz e os cenários são importantes na valorização das peças. Por causa desta apresentação cuidada somos tentados a equiparar o valor de moedas de prata ou jóias de ouro da naufragada Nau Nossa Senhora dos Mártires, do século XVII, às nozes e castanhas resgatadas do século XV, ou às solas de sapatos do século XVII.

Resgatar pedaços de tempo é de facto a expressão a aplicar. Adolfo Silveira Martins fala em “cápsulas do tempo” para se referir aos núcleos arqueológicos submersos. A água, por ser um ambiente com pouco oxigénio, dificulta o desenvolvimento de organismos vivos que ajudam à degradação das peças. É por isso que há uma variedade tão grande de materiais nesta exposição: da madeira ao couro, das cordas náuticas de fibra vegetal aos grãos de pimenta vinda da Índia, nada disto teria chegado aos nossos dias se estivesse em terra.

A água não é apenas um bom ambiente para nos fazer chegar vários tipos de património, mas ainda para fazê-los chegar em óptimo estado de conservação. Exemplo disso é o mosquete em madeira, uma arma de fogo do século XVII, que ainda tem gravado o símbolo do seu fabricante, e uma pequena escultura de um elefante, também em madeira, que manteve até hoje todos os mais pequenos golpes e traços expressivos.

O Tempo Resgatado ao Mar é assim espaço para a relação do mar com o homem e com os objectos por ele produzidos. No Museu Nacional de Arqueologia podemos ver rochas que se formaram em torno de moedas de prata de naufrágios do início do século XVII, ou mesmo uma espada concrecionada - um aglomerado de sedimentos e conchas que se solidificou em torno de uma espada e que acabou por corroê-la ao ponto de ela desaparecer. Agora resta o aglomerado de matéria orgânica e inorgânica em forma de espada: raio-x à peça que está exposta suspensa numa tina de água para que não se parta, mostra apenas a sombra de uma espada e confirma que dentro da concreção já não há nada.

Nos 120 anos do Museu Nacional de Arqueologia e nos 30 da arqueologia subaquática em Portugal, o ponto da situação desta disciplina feito em O Tempo Resgatado ao Mar revela 30 pontos arqueológicos que já foram alvo de investigação. Mas o país tem um dos mais importantes espaços marítimos com uma fronteira marítima de 835 quilómetros e um território marítimo de 15 mil quilómetros quadrados, que podem ser alargados a 4 milhões, com a proposta da política de expansão da plataforma continental.

“A exposição quer colocar o debate do património subaquático no mesmo plano de outros relacionados com as potencialidades do mar”, diz António Carvalho, acrescentando que o tema do património não é facilmente associado ao mar como são, por exemplo, as energias renováveis. Recorda o exemplo do texto assinado pelo já presidente Presidente Cavaco Silva na Revista Única, do jornal Expresso de 23 de Outubro de 2010. Aí o Presidente da República enumera exaustivamente todas as potencialidades do mar, nunca tocando no tema do património.

Estima-se que na área marítima portuguesa haja cerca de 3 mil pontos de possível interesse arqueológico e que correspondem principalmente a naufrágios registados perto da costa. Destes pontos destaca-se o sítio arqueológico de São Julião da Barra, em Cascais, onde os artefactos por descobrir serão incontáveis. “É uma lixeira arqueológica”, brinca António Carvalho.

A história trágico-marítima iniciada com os Descobrimentos guarda ainda estas peças que a população da época não teve capacidade de resgatar. A fechar a exposição estão os dois quadros de Jean Pillement que retratam o naufrágio do San Pedro de Alcantara em Peniche, no século XVIII. Mostram o momento do naufrágio, do mar deserto, cheio de destroços, mas também o momento da manhã seguinte, com o mar povoado de gente, em pequenas embarcações, a apanhar tudo o que conseguia. Mesmo ao lado, uma gravura do mesmo naufrágio, de Luis Paret, tem escrito “A desgraça imprevista, e a felicidade inesperada”.


 

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