Seguir o dinheiro até à cova

Quem não tem betão, caça com caixão. Eu acabei de inventar este ditado popular, mas ele parece-me definir, com rigor, o espírito do diploma aprovado há dias pela Assembleia da República, que passou a permitir às IPSS aceder ao negócio dos funerais.

Pelos vistos, os senhores deputados, que, em tempos não muito idos, entendiam que a actividade lutuosa era incompatível com a gestão, por exemplo, de um lar de idosos, concluíram de repente, numa época difícil para tantos negócios, que da enxerga até ao túmulo é apenas um saltinho, e que ele pode perfeitamente ser providenciado por uma só entidade.

Ora, este é um daqueles casos em que a coisa cheira muito mal – e não é por causa dos mortos, mas dos vivos. Desde que escutei na televisão, com estas orelhas que a terra há-de comer, Pedro Santana Lopes falar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa como se ela fosse um gigantesco porco-mealheiro, onde todos, dos clubes de futebol aos artistas nacionais, iam bater à porta de mão estendida, que eu percebi que o negócio da caridade tem muito que se lhe diga. E que o dinheiro que o Estado transfere anualmente para efeitos de solidariedade (só em 2012, e para as IPSS – onde a Santa Casa nem sequer está incluída –, foram 1,3 mil milhões de euros) é extremamente apetitoso em tempo de vacas magras.

Eu não sou certamente um daqueles senhores de extrema-esquerda para quem toda a caridade é ofensiva, já que ela atrasa irremediavelmente a justa revolução proletária. No meio da actual crise, o nosso país estaria certamente pior, mais desgraçado e ainda mais desprotegido se não existissem IPSS, boa parte das quais ligadas a uma Igreja que acaba por substituir o Estado em inúmeras funções sociais. Mas, se não sou de extrema-esquerda, também não sou daquela direita que se sente obrigada a fechar os olhos a leis duvidosas porque, estando a palavra “solidariedade” metida lá no meio, é feio estar a dizer mal.

É por isso que declarações sonsas como aquela que fonte do Ministério da Solidariedade e Segurança Social deu ao Expresso sobre o novo diploma IPSS-funerário provocam em mim um efeito exactamente oposto ao que pretendem alcançar: “No sector privado, associam-se capitais que geram lucro, o que é legítimo”, diz fonte oficial do democrata-cristão Pedro Mota Soares. Mas, “no sector social, associam-se pessoas para melhorar a resposta social do país.” Olha que bonito. Infelizmente, se a ideia desta frase era despreocupar os leitores e os eleitores, comigo não resultou. Até porque – azar – o actual secretário de Estado da Segurança Social – que, segundo a notícia, foi quem tomou a iniciativa de mudar a lei – chama-se Agostinho “não sei o que é a Ongoing” Branquinho.

Nós até podíamos estar perante um sector mal regulado, onde fosse necessário o Estado intervir. Mas não é assim. O sector funciona, modernizou-se muito, existem funerais sociais a 400 euros, o Estado reembolsa as despesas de quem precisa até 1257,66 euros – que problema é que há aqui para resolver, afinal? Como é óbvio, não há nenhum problema para resolver. O que há é muito dinheiro para ganhar. O negócio vale perto de 200 milhões de euros por ano e os estato-empreendedores do regime, especializados em sacar dinheiro de alíneas de decretos-lei, precisam desesperadamente de novas formas de ganhar a vida, à sombra dos diplomas manhosos que o Parlamento vai aprovando. Não há betão. Não há formação. Não há fundação. Sobra o caixão.

Jornalista, jmtavares@outlook.com

 

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