Há mil anos de memórias para contar

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Numa tentativa de ilustrar a complexa identidade da diáspora europeia, Gabi Gleichmann escreveu uma crónica da vida judaica na Europa durante o último milénio

Um dia, uma inesperada carta chegou a casa do escritor Gabi Gleichmann (Budapeste, 1954). Era dirigida à mulher e tinha sido remetida por um tio-avô de quem há muito não tinham notícias. Contava o velho aristocrata que dedicara muitos anos a investigar as vidas dos seus antepassados nascidos algures no Norte da Noruega, e enviava agora à sobrinha uma árvore genealógica, que abrangia os últimos três séculos e meio da família (com proeminentes figuras públicas), pedindo-lhe que acrescentasse o seu nome, o do marido e dos filhos, bem como as datas de nascimento. Gleichmann, filho de judeus húngaros, ficou surpreendido com a precisão. “Eu não conseguiria fazer uma árvore da minha família”, disse ao Ípsilon. “Durante séculos, os meus antepassados judeus foram empurrados através de diversos países europeus. Não tiveram oportunidade de criar raízes em sítio algum e, por fim, a brutal ascensão do nazismo acabou por liquidar quase toda a minha família. Eu já não tinha avós ou familiares mais velhos que me ajudassem a iniciar-me no passado.” Mas ele achava que era importante que os seus filhos soubessem também um pouco mais sobre as suas raízes judaicas, sobretudo porque a família (secular) não cumpria nenhuma das tradições religiosas. “Uma árvore genealógica não tem nada daquilo de que são feitas as vidas humanas”, diz Gleichmann, “não há conquistas, reflexões, sonhos, desejos, ambições ou sucessos. Não há chaves para abrir a porta do que foram essas realidades de gerações passadas.”

Este episódio fez-lhe descobrir o desejo de reavivar nele, e de explorar, a secular cultura judaica da diáspora europeia, qual Fénix renascida das memórias do passado perdido em livros antigos. “A barbárie assassina do nazismo não só exterminou seis milhões de judeus, mas deu também um golpe quase fatal na cultura judaica na Europa. Os sobreviventes viraram as costas à desolação e começaram uma nova vida em Israel ou nas Américas. Muitas das contribuições de judeus para a cultura europeia tinham também sido escondidas, ou reduzidas, ao longo dos século pelos vencedores, que são quem escreve a História.”

Também a vida de Gabi Gleichmann foi um pouco errática, à semelhança das de muitos dos seus antepassados. Nascido na Hungria, mudou-se para a Suécia com a idade de dez anos. O pai, diplomata, decidiu depois que, por razões políticas e porque começava a ressurgir algum anti-semitismo na Hungria, a família não voltaria a Budapeste. Na Suécia estudou literatura e filosofia, e tornou-se depois jornalista — durante anos foi presidente do PEN Clube sueco. Actualmente, vive em Oslo, é um conhecido crítico literário, autor e editor. “Na Suécia aprendi o que é a democracia e o respeito pelos outros. De alguma forma, tive a sorte de ter vivido anteriormente numa sociedade totalitária. Na minha infância muitas coisas eram proibidas, as mentiras estavam na ordem do dia.”

Mas qual seria então o caminho para que ele pudesse mostrar aos filhos a herança judaica e a complexa identidade que ela encerra? “Só a arte do romance é capaz de trazer de volta à vida os mortos e os esquecidos, miríades de indivíduos anónimos, dando-lhes de novo uma face.” E foi isso que fez. O Elixir da Imortalidade é esse romance.

A família Spinoza

Tudo começa com Baruch Halevi, o filho do rabi de Espinosa, localidade da região de Leão, perto de Burgos, em Espanha. Um dia, em 1148, ele tem uma visão: Moisés aparece-lhe e dá-lhe ordens para deixar a casa do pai e iniciar uma viagem para Oeste e fundar (num lugar que saberia mais tarde ser Lisboa) uma comunidade judaica sefardita de onde sairiam muitos homens e mulheres para conquistar todos os cantos do mundo. Moisés diz-lhe ainda que ele irá descobrir o grande segredo que a humanidade procura desde o início dos tempos. Já em Lisboa, Baruch torna-se médico de D. Afonso Henriques, e dá início a uma descendência que se prolongou por 36 gerações que atravessam quase mil anos da História Europeia. Pelo meio ficam os pogroms um pouco por toda a Europa, mas também os contactos com as figuras mais relevantes, como Torquemada, Rembrandt, Voltaire, Napoleão, Freud, Einstein, Hitler, Estaline e muitos mais.

Gabi Gleichmann leva o leitor, por capítulos curtos, por vezes intercalados com breves narrativas do presente, a viajar através da Península Ibérica medieval, depois pelo Renascimento, pela Holanda do filósofo Espinosa, pela Paris do Iluminismo, a ver por dentro a Revolução Francesa, as duas guerras mundiais, a ascensão do comunismo e do nazismo, o Holocausto e os gulags da Sibéria, para terminar em Oslo. “Todos nós somos máquinas do tempo itinerantes, as nossas memórias capacitam-nos constantemente para viajar para trás no tempo ao longo da História, para convocar eras passadas”, diz Gleichmann. “As memórias dos que partiram e dos que desapareceram continuam bem vivas debaixo do pulsar dos nossos dias.”

Em O Elixir da Imortalidade, o último descendente da família Spinoza, Ari, à beira da morte e sem filhos, narra a história dos seus ascendentes baseado nos inúmeros manuscritos deixados por um tio-avô e também nas memórias do que lhe ouviu contar ao longo da vida. Mais do que uma História dos grandes momentos da Europa, este romance é sobretudo uma crónica (por vezes divertida, mas sempre irónica) da vida judaica na Europa. Sem dar profundidade psicológica às personagens, Gleichmann opta pela primazia do contar da história, oscilando entre as aventuras pícaras e as narrativas mágicas de uma qualquer Xerazade judia assimilada.

 

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