Nós não somos este escaravelho

A cientista portuguesa Ana Sofia Reboleira descobriu, numa gruta de dois mil metros de profundidade situada na Abecássia, ali nas montanhas do Cáucaso junto ao Mar Negro, uma nova espécie de escaravelho que não tem asas nem olhos viáveis. Segundo informa o Diário de Notícias, trata-se de “um escaravelho carabídeo”, e foi pela sua “adaptação à vida sem luz e às condições inóspitas” naquela que é a gruta mais profunda do mundo, que perdeu as suas asas e os seus olhos deixaram de servir para ver. A Dra. Reboleira, que batizou o seu achado de Duvalius abyssinius, considera “provável que ele habite outras cavidades do vale glaciar de Ortobalagan”.

Um dia um cientista português vai ganhar o Prémio Nobel. Já aconteceu uma vez com Egas Moniz e a lobotomia, o que nos deu a todos a duvidosa honra de sermos todos lobotomizados de nascença. Como é evidente, desejo uma carreira preenchida de sucessos à nossa brava cientista no Cáucaso, incluindo uma mão-cheia de prémios. O meu medo é que depois digam que nós portugueses somos como o escaravelho que ela descobriu, quase uma versão zoológica da Caverna de Platão, seres de tal forma habituado à funda depressão e à falta de horizontes que tenham perdido as asas e os olhos. Às asas, para humanos, chama-se imaginação. À metáfora dos olhos chama-se aqui “vontade de ver”.

Nós, os portugueses, não somos e não podemos ser o escaravelho de Ortobalagan. Não podemos ter perdido a capacidade de imaginar um outro país que não no fundo da gruta. Não podemos ter perdido a vontade de ver, com olhos de ver, o mundo à nossa volta. Não podemos ser um país dividido entre os que não têm imaginação para mais do que isto, e os que se recusam a ver a realidade.

Às vezes receio, confesso, que isso tenha sucedido já. Receio que nos tenhamos tornado num país de comentadores, e comentadores de comentadores, apenas. Num país de espectadores — o escaravelho de Ortobalagan, que tem apenas sete milímetros e perdeu o pigmento por viver longe da luz do sul, apresenta contudo “um alargamento das antenas”. Ora, um país de espectadores não tarda muito a tornar-se num país de vítimas.

Deve haver um limite qualquer para a passividade. Tem de haver um momento em que o escaravelho de Ortobalagan entenda que tem agência e, em consequência, aja. Que não espere, nem desespere, mas faça ele mesmo. E se isso não acontecer ao escaravelho, ao menos que nos aconteça a nós. Mas lá está, só acontece se fizermos e não esperarmos.

Estamos a chegar aos 40 anos do 25 de abril. A ditadura teve 48 anos — 17499 dias durante os quais quiseram que nos tornássemos como este escaravelho, lá na sua gruta chamada da Krubera-Vorónia — sem asas da imaginação nem vontade de ver. Talvez algures na nossa memória genética tenhamos ficado condicionados, habituados a viver sem futuro nem luz, sem capacidade de reação. Mas também noutro recôncavo da memória ficou a centelha que nos fez perceber que podíamos fazer qualquer coisa para nos salvarmos — e mais ainda, que isso nos competia a nós.

Assim sendo, junto aos parabéns o meu obrigado à Dra. Ana Sofia Reboleira. Pela descoberta científica, e por nos ter apresentado uma imagem tão perfeita daquilo em que não nos podemos tornar.

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