No “Buraco Sagrado” ainda há gente, mas ninguém se lembra deles

À sua frente estende-se uma paisagem lindíssima mas nada é belo na vida dos moradores da rua Jazigo, em Vila Real. Não há saneamento, não há iluminação pública e vivem sob a ameaça de ruína. Abandonados à sua sorte.

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Adriano Miranda

Podia ser o ponto de maior atracção turística de Vila Real ou até mesmo o seu ex-libris. Contudo, por trás do miradouro da Vila Velha, em tempos, local das portas da cidade transmontana, encontra-se um dos bairros mais degradados da urbe. Situado nas escarpas sobre a confluência dos rios Corgo e Cabril, apresenta-se um panorama tipicamente transmontano: uma imensidão de montanhas onde predomina o contraste entre o verdejante e o xisto das serras. Uma paisagem privilegiada.

A 100 metros da Câmara Municipal e da principal avenida de Vila Real, a rua Jazigo, conhecida também por “Buraco Sagrado”, passa despercebida à maioria dos vila-realenses. Por trás da Santa Casa da Misericórdia de Vila Real, para muitos, não existe nada. Mas, para os moradores das cinco habitações deste recanto do centro histórico da cidade há muitas histórias para contar. Recuando atrás, em cada esquina, em cada muro, em cada casa, desenrolam-se todos os momentos das suas vidas. Vidas longas, já.

A paisagem contrasta com um ambiente constrangedor. O silêncio faz lembrar a entrada num cemitério. Não se vê vivalma. Há várias casas desabitadas. Uma demolida. Quem lá vive tem as persianas fechadas. Têm medo de dar a cara. Inicialmente. Quando, finalmente, foram abrindo as portas, foi num ápice que as palavras rolaram. Palavras de revolta, muita revolta. Assim se dizem sentir todos os moradores: injustiçados e revoltados.

“Aqui, até para morrer é preciso pedir licença. Só existe Lisboa. O resto é paisagem”, desabafa Manuel Rocha, morador ali há 33 anos.

Os problemas são vários. Começaram por falar da falta de saneamento básico quando estão a 100 metros da Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR. “Só nós é que não temos saneamento porque somos esquecidos. O saneamento da cidade vai desaguar na ETAR, mesmo aqui por baixo de nós, mas nós não temos. Isto causa-nos uma revolta enorme”, diz José Martins, também morador no bairro há 33 anos,

As fossas destes cidadãos enchem com grande facilidade e, devido aos caminhos inacessíveis e degradados, não há qualquer possibilidade de uma cisterna despejá-las. São os próprios moradores que o fazem. “As nossas fossas enchem nos nossos próprios quintais. Se por algum motivo de saúde não as podermos esvaziar, podem acabar por transbordar”, revolta-se Manuel Rocha.

Para resolver esta situação é necessária uma obra com um custo elevado pois a rua é muito estreita para completar a estrutura de saneamento básico que já lá está instalada. Essa estrutura passa por túneis a uma profundidade de 200 metros. Para Manuel Rocha, “era necessário romperem os túneis como fizeram na conhecida ‘zona sul’ da cidade.”. Trata-se da zona mais nova da cidade, onde há uma maior aposta a nível da construção e reabilitação de infra-estruturas.

A autarquia anterior chegou a realizar um projecto para resolver a situação mas os resultados estão à vista. Nenhuns. José Martins e Manuel Costa dizem que a resposta de Manuel Martins, ex-presidente da Câmara, foi sempre a mesma: “O presidente disse-nos na cara que não fazia nada porque somos poucos e que ao fazê-lo iria dar azo a outras pessoas virem para cá viver.” E sentem-se discriminados.

O risco de derrocada de pedras dos muros que se encontram mesmo por cima das suas casas é outra das queixas dos moradores. “Já veio cá o engenheiro da EMAR (Água e Resíduos de Vila Real), o engenheiro da Protecção Civil, já vieram cá todos. Iam lá ver e diziam que eram muitos encargos”, continua Manuel Rocha.

Há dois anos avisou a Protecção Civil da possibilidade do muro puder estar a cair. O engenheiro enviou um documento para a câmara a denunciar a situação. O problema arrastou-se e o muro acabou por cair.

“Se há obras prioritárias esta seria uma delas. De hoje para amanhã poderá haver aqui uma catástrofe.” Todos os muros precisam de uma análise especializada, em particular o muro por baixo da Santa Casa da Misericórdia que precisava de ser rectificado. Manuel Costa vai mais longe: “Podiam fazer uma zona pedonal até porque estamos num dos pontos mais bonitos da cidade. Nem uma placa existe para o Miradouro.”

O morador alerta ainda para a falta de higiene que impera na rua: “A avenida aparece sempre limpa. Aqui não. Aqui as pessoas caem no esquecimento. Tem de ser a vizinha a fazer limpeza da rua.”

A degradação do piso não permite a passagem de uma ambulância. Sendo a maioria dos moradores idosos, com idades compreendidas entre os 60 e os 75 anos, a situação torna-se ainda mais grave, principalmente em casos de emergência. Segundo Margarida Rodrigues, moradora no bairro há 40 anos, “há que ter consciência que há pessoas idosas e doentes aqui” Ela própria acolhe uma criança deficiente.

Mas, para esta habitante, há uma questão ainda mais grave: “O problema mais urgente é a falta de iluminação no final da rua que coincide com a entrada para a estrada de quem vai para Parada de Cunhos. Já caíram pessoas nessa estrada. Qualquer pessoa que passe ali de noite e tenha um problema qualquer fica lá.”

Margarida Rodrigues já viveu numa casa na rua acima desta. Há nove anos, o Programa Polis pagou-lhe 35 mil euros, na altura, 7 mil contos, para ela sair dali. Demoliram-lhe a casa. “Deram-nos uma ninharia que não serve para nada, não era com esse dinheiro que eu fazia uma casa nova”, diz, triste. Passados estes anos, segundo Margarida Rodrigues, “está tudo por fazer, tudo em ruínas, parece que passou ali um terramoto. Acho que não é digno.”

O vereador do Ordenamento do Território e Planeamento Urbano, Adriano Sousa, garante que “é uma prioridade da autarquia reabilitar uma zona que se encontra no coração da cidade e que está escondida da maioria das pessoas. Não existem cidadãos de ‘primeira’ nem de ‘segunda’. Todos têm os mesmos direitos que os outros cidadãos que habitam outras zonas da cidade.”

O que estes moradores esperam agora da nova autarquia é bom senso: “Estamos a dar-lhes o benefício da dúvida. Precisamos que não se esqueçam de nós como os outros se esqueceram. Somos vila-realenses. Também pagamos impostos. Estamos praticamente a 100 metros da Câmara e deixam-nos aqui assim. Toda a gente sabe e ninguém quer fazer nada?”

Em 39 anos de mandato do PSD nada foi feito para mudar esta situação. Manuel Rocha admite que já lutou muito mas que está cansado: “Dá a sensação que estão a gozar comigo, quanto mais falo pior é.”

“Para intervirmos naquele espaço temos de fazer o projecto de requalificação, inventariar e orçamentar os trabalhos necessários para fazer uma intervenção correcta e isso demora tempo”, diz o vereador Adriano Sousa, garantindo que quer resolver o problema “no mais curto espaço de tempo.”

Para Manuel Rocha não há dúvidas: “Qualquer dia acontece uma desgraça e aí, de quem é a responsabilidade?”

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