Operação Nariz Vermelho precisa de donativos para continuar a animar crianças no hospital

Improvisar, tornar o ridículo aceitável, trabalhar com nada e desconstruir a realidade são as ferramentas usadas pelos doutores-palhaços. Neste dia do Nariz Vermelho, organização alerta que visitas aos blocos operatórios estão em risco por falta de verbas.

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Felisberto, Marta, Sofia e Rui. Quatro crianças internadas num hospital de Lisboa que receberam recentemente a visita dos doutores-palhaços da Operação Nariz Vermelho (ONV). Por ano, diz a organização, há cerca de 40 mil crianças que sorriem nos hospitais por sua causa.

Os doutores-palhaços visitam regularmente as enfermarias de 13 hospitais do país onde estão internadas crianças. Mas, no maior hospital pediátrico do país, o Dona Estefânia, em Lisboa, o projecto-piloto que, além das enfermarias, permitiu alargar estas visitas ao bloco operatório está em risco por falta de verbas.

No caso das enfermarias, as visitas são oferecidas pela ONV aos hospitais, mas levar um doutor-palhaço uma vez por semana ao bloco operatório custa seis mil euros por ano, entre formação e deslocações. No Hospital Dona Estefânia, a verba terminou no início do mês de Março. Para que estas visitas continuem a realizar-se, a ONV  precisa desse dinheiro, que até agora tem vindo de empresas que funcionam como mecenas e de donativos particulares. “O ideal será manter o projecto a três  anos, o que significa um financiamento de 18 mil euros”, diz a coordenadora de comunicação da ONV, Magda Ferro. Por causa da crise, a ONV admite perspectivar o projecto pelo prazo de mais um ano, para o que serão precisos apenas seis mil euros. Na página oficial, está aberta a porta a quem quiser ajudar.

Enquanto esperam por verbas para este projecto especial, a ONV prossegue com as tradicionais visitas dos palhaços nas enfermarias. “Hei, Felisberto, como estás?”, questiona Fernando Terra no papel de Dr. Kotonete kom Kapa logo que entra na enfermaria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. São 11h30 e, pedindo licença, dois doutores palhaços da ONV invadem, a cantarolar, o quarto onde está Felisberto. Missão para os próximos 15 minutos: levar sorrisos às duas crianças que estão internadas neste quarto.

O Felisberto tem 14 anos e é uma das milhares de crianças que os doutores-palhaços visitam durante todo o ano. O rapaz está internado há uma semana e sofre de uma doença crónica e hereditária do foro hematológico, que foi diagnosticada quando tinha apenas seis meses: drepanocitose. Entre antibióticos e tratamentos, o adolescente deverá estar na sala de internamento durante dez dias consecutivos.

Improvisar, tornar o ridículo aceitável, trabalhar com nada e desconstruir a realidade são as ferramentas usadas pelos profissionais da ONV. “Começar com um adereço, com o pormenor, com o que se diz, com o que não se diz, não fazer nada ou não marcar presença. Isto torna o trabalho do palhaço no hospital numa coisa muito própria”, refere Magda Ferro.

João Paulo (Dr. Mambu) e Fernando Terra (Dr. Kotonete kom Kapa) já fazem parte da ONV há dez e sete anos, respectivamente. “Eu tive formação para a ONV em 2005 e a partir daí conheci o projecto. Dois anos depois, a presidente da Operação Nariz Vermelho, Beatriz Quintela, ligou-me para fazer o casting para ser doutor-palhaço, e eu entrei para o grupo. Tive sempre contacto com formadores e passei a doutor-palhaço.”, revela Fernando Terra.

Enquanto explica como conheceu o projecto, João Paulo, de face estreita e de cabelo encaracolado, faz palhaçadas. Conheceu a organização em 2004, altura em que fez o casting. “Soube do projecto através de um amigo, fui convidado para fazer parte da ONV e sou doutor palhaço desde esse ano”, afirma.

Há crianças que não querem palhaçadas
“A criança no contexto hospitalar perde a sua autoridade”, explica Magda Ferro. É por isso que a ONV coloca nas mãos do doente a decisão de ser ou não visitado. Há crianças que estão em internamentos longos e complexos e que não gostam de palhaços. “Na primeira visita o palhaço vai-se embora, na segunda bate à porta, na terceira canta à porta, na quarta já tenta entrar”, explica a coordenadora de comunicação da ONV.

Felisberto não se importou que os doutores-palhaços o visitassem. Aliás, para ele, é sempre uma honra receber os convidados: “Gosto das palhaçadas, do que eles fazem”, diz o jovem divertido. Está atento às canções e tenta acompanhar o ritmo.

Tal como todos os trabalhos, também este tem as suas peripécias associadas. Fernando Terra acredita que o mais complicado de tudo é despertar um sorriso nos adultos que acompanham as crianças, dado que estes têm noção da gravidade da doença. O mesmo não acontece com os mais novos: “a natureza de uma criança é por si só divertida”, diz. Por vezes, são os pais que constituem uma dificuldade ao trabalho dos doutores-palhaços. “É o próprio adulto que acompanha, que nos avisa para não tocar em algum material médico, e aí acaba por trazer de novo o miúdo de volta à realidade”, explica.

Nas formações os doutores-palhaços aprendem a ler o ambiente da sala onde entram e a verem o que pode ou não ser feito improvisadamente. “Quando entramos num quarto não sabemos o que vai acontecer. Sabemos que temos um menino com um colega do lado. E a acção pode partir de um gesto”, explica João Paulo.

“O nosso foco é: cada cêntimo que recebemos é para transportar alegria a cada criança, não esquecendo o nome de cada uma delas. Hoje levámos alegria ao Felisberto, à Marta, à Sofia, ao Rui. Portanto, cada uma é muito importante e o nosso trabalho é feito a pensar especificamente nela”, ressalva Magda Ferro. “A nossa visão é sermos a instituição de referência do trabalho artístico nos hospitais e podermos levar alegria a todas as crianças hospitalizadas, através de um sistema sustentado e coerente”.

Há histórias que ficam sempre na memória. Uma delas é a da “sopa de sapato”. Um dia a doutora Beatriz Quintella, a presidente do projecto que morreu em Setembro passado, vestia a pele de Dra. Da Graça “deixou cair um sapato dentro de um prato de sopa”. Nasceu, assim, a sopa de sapato, hoje em dia uma tradição mais virada para o queijo, por causa do cheiro a chulé”, recorda o doutor Mambu entre risos e acordes de guitarra.

“A questão que se colocava num projecto absolutamente inovador era um desafio, porque havia desconfiança, resistência e muitas dúvidas sobre a capacidade de haver uma intervenção séria e um trabalho cuidado feito por artistas nos hospitais”, lembra Magda Ferro. Sendo este um projecto que inova socialmente, a coordenadora sublinha que no início não foi fácil conquistar a confiança dos parceiros. No entanto, o balanço é já bastante positivo. “Em 2002 começámos em três hospitais, hoje estamos em 13. Uma equipa que começou com três artistas hoje tem 22”, refere.

Ao longo do tempo, novas unidades hospitalares têm aberto portas à actividade dos doutores-palhaços. “O culminar dessa recompensa é o projecto do bloco operatório que está a decorrer no Hospital Dona Estefânia que, no fundo, é o sítio ou o serviço mais sensível dentro do hospital”, sublinha. Desde que foi criada, esta instituição particular de solidariedade social já ganhou direito a um dia no calendário: o Dia do Nariz Vermelho, que se assinala esta sexta-feira. Recebeu, além disso, vários prémios, entre os quais o prémio “Direitos Humanos”, atribuído pela Assembleia da República, em 2009.

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