Da passadeira ao selfie

Foto
À entrada da exposição, Interview, a violência da instalação de Malachi Farrell. Um mecanismo-monstro de movimento, som e flashes; o espectador caçado malachi farrell, interview, 2000

Percurso histórico pela aventura paparazzi. Em que o espectador foi interagindo. Somos paparazzi de nós mesmos, hoje? Conversa com Camille Lenglois, uma das comissárias da exposição do Pompidou de Metz

Nas entrevistas a um grupo de paparazzi, um bloco que integra a exposição, nenhum se assume como fã das stars. Pelo contrário: todos se distanciam desse mundo. O que já era a atitude do fotógrafo Francis Apesteguy no documentário de Raymond Depardon Reporters (1981): indignava-se pelo facto de Richard Gere ganhar milhões e não querer sequer tirar os óculos e deixar-se fotografar...

Cada fotógrafo é uma abordagem diferente. Mas de facto não há reflexo de fascínio dos paparazzi pelas estrelas. No início – e o início são os anos 60, mas isso prolonga-se pela década de 70 e 80 – tudo se baseia numa relação de proximidade, de familiaridade, entre fotógrafo e star. Por exemplo: o trabalho de Gary Lee Boas, esse sim, fascinado pelas estrelas, à porta dos teatros e dos concertos a pedir autógrafos [Starstruck: Photographs from a Fan], é resultado da sua obsessão. Há relações cúmplices e há relações tensas. E o que se passava nos anos 60 em Roma não é o que se passa agora em Los Angeles, cidade em que os paparazzi agem em bando e são incrivelmente agressivos. A relação de cumplicidade evoluiu para outra coisa.

E há nostalgia nos paparazzi a falar desses tempos. E desgosto pelo que se passa agora – a exposição, aliás, está impregnada de nostalgia.

Basta ouvir [o fotógrafo] Daniel Angeli: diz que hoje não escolheria esta profissão. Isso também nos interessava, regressar a esse período.

Permanece no encontro entre paparazzi e estrela um combate, como luta de classes. Como se o fotógrafo fosse o justiceiro a lembrar à estrela o seu pacto com o diabo. O paparazzi “nasceu” na Roma da Dolce Vita, chegara das aldeias à cidade para mergulhar num mundo que não conhecia; é como se um ressentimento essencial permanecesse na relação. Isso está na atitude de Apesteguy.

O que é interessante é ver que cada paparazzi é um “caso”. É evidente que Francis Apestéguy vê a luta de classes em progressão no trabalho dos paparazzi: é o confronto com um grupo social e com esse mundo, um combate de exposição de um microcosmo social, do universo em que as estrelas evoluem. Ou seja, uma atitute política.

Os paparazzi são autores? Não é arte, é uma estética, segundo os comissários. Mas há sinais de autoria? Não é contraditório o facto de artistas contemporâneos se apropriarem dos códigos paparazzi – é a narrativa desta exposição – e o resultado ser “arte”, ficando a foto paparazzi com o estigma de não ter olhar, não ter coração, de não ter controle sobre um discurso?

A estética paparazzi é o resultado de contingências: os fotógrafos têm de agir rapidamente, há elementos que obstruem a visão, há os flashes ou então o fotógrafo está longe com uma teleobjectiva, há movimento, rapidez, caça... Mas há figuras que se destacam, assinaturas visuais. As fotos que Ron Gallela tirou a Jackie Onassis reconhecem-se: reconhece-se a relação que existe entre eles...

... é como um casal, com as suas disputas...

... exactamente, e nas fotos ele exibe as suas artimanhas para conseguir chegar à imagem,

Sobre a apropriação artística dos procedimentos dos paparazzi, as fotos de Richard Avedon para a Harper’s Bazar, em 1962 [um pastiche de foto-reportagem, com um casal de estrelas, interpretadas por Mike Nichols e Suzy Parker, a lembrarem mais do que levemente Richard Burton e Elizabeth Taylor no seu explosivo encontro em Cleópatra], é um momento determinante. Mas havia ironia. Em The Penance (2008), da artista sueca Malin Arnesson, que foi paparazzi e que, para essa obra, pediu a fotógrafos que a seguissem na sua vida privada durante um ano, há um suplemento de moral e um mea-culpa. Já as Untitled Film Stills de Cindy Sherman, final dos 70s, são júbilo formal pós-moderno, sem culpa.

No caso de Arnesson ela quer colocar questões ao espectador. Há uma procura de redenção: ela quer regressar ao seu passado e questionar a intrusão numa intimidade, o voyeurismo. O espectador é levado a participar num olhar que problematiza. O caso de Cindy Sherman, como disse, é diferente. Há uma atitude pós-moderna de apropriação dos códigos e atitudes.

Vou relatar-lhe um percurso pessoal. A peça de entrada, a instalação de Malachi Farrell Interview (2000), agride inicialmente: estamos na pele das “vítimas”, o mecanismo a movimentar-se como um monstro. No final, depois de uma narrativa histórica que também é emocional, sai-se por onde se entrou, enfrenta-se de novo Interview mas a peça já é outra: domesticada, integrada, já nos pertence. Passamos a vida, hoje, nas redes sociais a ser paparazzi de nós mesmos. O que apetece é fazer um selfie para o Instagram à beira de Interview.

É muito interessante isso. É verdade que podemos olhar para a instalação de várias maneiras. Posso falar-lhe da minha experiência: conheci-a de imagens, mas quando a vi na exposição olhei-a de maneira diferente. Quando se entra é-se confrontrado com algo agressivo. Mas depois não é a violência que domina, é uma atmosfera: o ruído das vozes, a crepitação dos flashes...estamos mergulhados em qualquer coisa de interactivo que ultrapassa o sentimento de violência. E é verdade que o percurso nos vai dando a participação de nós mesmos nesse dispositivo. Começamos com uma obra interactiva, acabamos com a obra de Jonathan Horowitz, Daily Mirror, em que se sublinha o confronto do espectador consigo mesmo [a peça reproduz a capa do tablóide britânico, de 15 de Setembro de 2005, em que Kate Moss aparecia a consumir cocaína numa soirée privada; agora em vez de Moss e através de um mecanismo de capa-espelho é o espectador o “fotografado”]

Mazarine Pingeot, a filha “escondida” de François Mitterand, cuja identidade foi revelada pela foto de um fotógrafo representado na exposição, Sebastien Valiela, foi uma das vozes que falou contra a caução que um museu dá com esta exposição aos paparazzi. Indignou-se: “como se isto pudesse tornar-se arte”. Quer comentar?

Percebo essa reacção. É importante começar por dizer que a exposição não quer homenagear os paparazzi mas mostrar que houve artistas que se interessaram por esse trabalho e que assim interrogaram as práticas de uma sociedade e do espectador.

Cada espectador deverá depois fazer o seu trabalho.

A polémica é antiga: a questão da hierarquização, saber o que é arte e o que não é, o que deve ser visto e o que não deve. O que nos interessou foi ver como a fotografia integrou práticas anexas, vernaculares. E a que tipo de reflexão isso nos deve levar.

Há uma imagem ausente, um fantasma: as da morte da princesa Diana, que foi um momento decisivo na história dos paparazzi, na sua demonização e que marcou o início de um trabalho de reflexão (várias exposições abriram depois) para tentar perceber o que acontecera. Houve fotos, publicadas em revistas, do corpo de Diana. São imagens ausentes aqui.

Estava fora de questão mostrá-las. Era um a priori ético. Mas mostramos a capa da revista que anuncia no interior essas fotos. Interessava-nos pensar os mecanismos de difusão, a relação com a imprensa, questão decisiva no aparecimento dos paparazzi – o caminho ficou aberto nos anos 20 com a imprensa ilustrada. Para isso não precisávamos de mostrar as fotos. Assim conseguimos aliviar um ponto de tensão que iria pesar sobre a exposição. Diana é uma questão emblemática. A imagem da sua morte não tinha lugar na exposição. 

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