Bem-vindos ao caos

Foto
bmworks.com

Ao quarto álbum, Bob Da Rage Sense não se desvia do seu objectivo. O rapper nascido em Angola continua voz à esquerda num hip-hop fiel à matriz activista

Bob Da Rage Sense. Bob de Marley, Rage de Against the Machine, Sense de Common. Não é propriamente novidade. Já o sabíamos pelo menos desde Menos Pão Luz e Água, ou M.P.L.A., o álbum que em 2007 o revelou além da comunidade hip-hop que o acolhera com entusiasmo quando se estreou com o EP Underground Konsciente (2002), ainda em Angola, e depois com o longa-duração de estreia Bobinagem (2004), editado quando já se mudara para Lisboa. O angolano nascido Robert Montargil não escolheu o nome de guerra por acaso. Cada palavra sinaliza uma vertente da sua acção: o Marley activista, caribenho pan-africanista, os Rage do rock agreste e do grito enraivecido (“Fuck you, I won’t do what you tell me”), o Common do hip hop enquanto consciência histórica e denúncia feita com elegância.

Dez anos depois do primeiro álbum, o olhar não mudou, o tom não mudou. Mudou um mundo onde se agudizaram as tensões pressentidas e a desigualdade denunciada anteriormente. Mudou a dimensão do rapper. Já precisamos de lhe desmontar o nome. Bob Da Rage Sense por Bob Da Rage Sense, em Viver à beira do abismo, uma das canções do novo Ordem Depois do Caos: “Eu não me adapto à sociedade / ergo o meu muro invisível onde encontro a criatividade / porque acredito que a individualidade é a força motriz da minha personalidade”.

O autobiográfico e o social

Roberto Montargil fala ao Ípsilon desde Luanda, onde está há um mês, lançando e promovendo A Ordem Depois do Caos no país onde nasceu em 1982. Não ficou por ali. Também deu um salto a Moçambique, onde se apresentou em concerto. E fala-nos do desejo de aumentar o seu raio de acção para além de Portugal e Angola. Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Brasil. A sua música tem-se espalhado pelos territórios onde se fala português e ele quer ir de encontro a quem o ouve. O que canta diz respeito a todos, será compreendido por todos. “No geral sempre escrevi para o mundo. O atrito social e político que se vive hoje não é exclusivo de Portugal ou de Angola. Os países da lusofonia não estão só ligados pela língua e pela cultura do samba, do kuduro ou do fado. Centrar-me em Angola é centrar-me também no Brasil ou em Portugal. Cada sociedade tem as suas decadências e as nossas não são excepção”. Ouvimo-lo logo a início, no manifesto de intenções deEscrever para quê: “Estou embriagado de revolta / anulado plebeu da sociedade / escrevo para que haja estímulo e vontade / de mudar e caminhar rumo à liberdade / Escrevo para acabar com as disparidades / impostas por um bando de cowboys que nos governam / e roubam sem piedade”. 

Ordem Depois do Caos começou a ser gravado em 2011. O objectivo seria editá-lo no ano seguinte mas algo se interpôs no caminho. “Queria fazer deste disco a junção de tudo o que fiz até hoje. A base seria aquilo que já conhecem de mim, mas sobre isso, cairia o diferente. À medida que fui gravando, convidando pessoas, fazendo a pós-produção, fui-me tornando cada vez mais exigente”. Um ano transformou-se então em três, durante os quais convocou para o disco Fuse, Capicua, Sir Scratch (“o meu comparsa de sempre”), Sam the Kid, Virgul, NBC, Milton Gulli ou Selma Uamusse. Objectivo cumprido: Ordem Depois do Caos é o álbum em que o autobiográfico e o olhar amplo sobre a sociedade está melhor expresso liricamente. Resumo muito resumido: “não sou contra o milhão / sou contra o tostão” (emSem escolha).

Bob Da Rage Sense, voz à esquerda num hip hop fiel à sua matriz activista, ritmo às palavras como denúncia e consciencialização. Podemos coloca-lo ao lado de Chullage ou Valete, em Portugal, ou MCK, em Angola. Musicalmente, porém, encontrou outro lugar, em que as raízes da música que abraçou são determinantes. Estão lá nos órgãos vintage samplados, saídos da soul, nos baixos sintetizados do g-funk, na força do gospel ouvida através da Nu-Soul Family. “Adoro o Nas e o Common, são os meus rappers favoritos, mas em casa quase não ouço hip hop. Ouço o Marvin Gaye, Pink Floyd, Chico Buarque, ouço o baixo do James Jamerson no ‘What’s going on” e só penso que quero aquele som orgânico numa das minhas faixas”. Não é nostalgia, é resistência. Quando olha em volta para o hip hop actual divulgado em larga escala, vê demasiada festividade acéfala, demasiada glorificação do luxo. “Não há qualquer problema com a música de festa. O hip hop começou assim, com as block parties, com o Grandmaster Flash. Mesmo os Run DMC faziam música de festa. Mas há uma grande diferença em relação ao que vemos hoje. É que havia ali inocência e uma base que se mantinha e hoje a futilidade assusta – e chamar hip hop a instrumentais dos Snap misturados com ‘crunk’… “

Depois há o outro lado. Porque existem as canções onde a digitalia ganha protagonismo e onde sintetizadores esvoaçam sobre o espaço sonoro enquanto um sample de timbalões avança em ritmo marcial, ameaçador (como em Já não te reconheço, uma das melhores canções do álbum). Essas canções têm origem precisa: “O lado mais electrónico e digital vem da minha veia prog-rock. Ouço muito King Crimson. E o meu álbum português preferido é o ’10.000 Depois Entre Vénus e Marte’ do José Cid”.

Os contornos da sua música estão agora plenamente definidos. As suas palavras e a sua atitude não mudaram substancialmente, mas ouvimo-las agora mais prementes, mais perfeitamente definidoras de uma realidade. Que é a da Angola onde vê a miséria conviver com uma ostentação corruptora das mentalidades, ou a do Portugal e de uma Europa que, a manter-se este rumo, poderá estar muito melhor daqui a uns anos (mas a vida dos portugueses e dos restantes europeus estará certamente muito pior).

A ordem que Bob da Rage Sense deseja é a que sobrevém a um despertar. Lança as rimas: “Sabemos onde estão as criptas dos vampiros que nos mordem / mas continuamos a depositar confiança na nova ordem / que sangra sem piedade todas as nossas perspectivas / se o teu pai não é senhor, não faças expectativas / vais passar dificuldades e ter noites depressivas / dói saber que as revoluções acabaram passivas”. Bem-vindos ao caos.

Sugerir correcção
Comentar