A União Europeia é um espectáculo por estrear

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MAGDA BIZARRO

Interpretações junta Tiago Rodrigues e Jacinto Lucas Pires numa pergunta colectiva (tão real como um boletim numa urna de voto) para estes tempos de cacofonia: uma sílaba pode destruir o sonho europeu?

Joaquim sente-se “mesmo cool no metro” em Bruxelas e é um homem capaz de apreciar, como uma espécie de “George Clooney sofisticado versão europeia”, a paisagem “gerúndia” da sua viagem de carro pelo Alentejo. Afinal, Joaquim é só um, um tradutor português que se enganou e que faz a viagem interior da tentativa e do erro com o coro a cantar-lhe a tragédia de toda uma múltipla Europa. Estamos perdidos na tradução e, como Sofia Coppola tornou quase irresistível dizer, o lugar onde ela nos deixou é mesmo estranho — é possível destruir com uma sílaba o sonho europeu ou a União Europeia (UE) ainda nem sequer se estreou?

Estamos no Grande Auditório da Culturgest, onde hoje e amanhã à noite o coro vai cantar que “fixe é não fazer nada” e transformar Adeste Fideles, Va Pensiero ou o Hino da Alegria em poesia existencialista e estatística. Afinal, o Hino da Alegria versão Jacinto Lucas Pires canta-nos loas sobre as coxas de rã que importámos nos últimos anos e os suicídios e as hipotecas desta UE — cambalhotas com a linguagem interpretadas e encenadas por Tiago Rodrigues, com uma ajudinha de 80 dos seus coralistas mais próximos. Interpretação, o espectáculo que os dois fizeram juntos, é então a história de como um erro de tradução do Parlamento Europeu lança a União numa espiral de caos da oratória e da vida, entre protestos na assembleia, crashes nas bolsas, depósitos congelados e contestações avulsas. Mas é sobretudo a história de um indivíduo entalado num colectivo de uma escala esmagadora — um pouco como Tiago Rodrigues ao canto daquele palco, enquanto o Coro Sinfónico da Escola Superior de Música de Lisboa lhe lança olhares, lhe canta a acta, o envolve como gente que de facto é.

O erro? A frase — ficção futura — de um deputado alemão que diz, em 2015, que “é uma felicidade Portugal pertencer à UE”, mas que o tradutor interpretou como sendo uma “infelicidade”. Com duas letrinhas apenas se escreveu a sílaba que tudo confunde. A ideia que inspirou a peça foi a realidade do “relatório Estrela” (como em “Edite Estrela”), uma proposta legislativa sobre direitos sexuais e reprodutivos da eurodeputada socialista portuguesa, chumbada por um erro de tradução que condicionou uma votação no final do ano passado.

“Este espectáculo reivindica o problema da linguagem contra a certeza dos números”, resume Tiago Rodrigues alguns dias antes da estreia, ainda um pouco cheio de Joaquim, o tradutor-intérprete que Jacinto Lucas Pires lhe ofereceu à mesa de um café e que já tinha sido apresentado ao público numa versão work in progress em Outubro, na festa dos 20 anos da Culturgest. Agora é a concretização, a estreia de Interpretações num momento em que não é certo que o espectáculo parlamentar, cacofónico, europeu e mercantil que é a UE tenha sequer passado a fase de reescrita do guião — mesmo quando estamos prestes a eleger novos actores secundários, já em Maio, para os papéis de eurodeputados. Sonho europeu?

“Umberto Eco fala da tradução como língua da UE”, associa Lucas Pires, e “a UE também é um espectáculo que ainda não aconteceu. Falta realizar esse sonho.” “A UE ainda não se estreou”, diz Tiago Rodrigues enquanto desenha a parangona com as mãos num jornal feito de ar (um palpite acertado). Afinal, “é a viver esses problemas [de tradução, de cacofonia] que estamos, e não a criar uma espécie de esperanto de algarismos — que é um bocado esta austeridade”.

A arma mais séria

Estamos no Grande Auditório da Culturgest e Tiago Rodrigues garante que “o teatro não dá para guardar na cave de um banco”. Mas também estamos na política: o coro é um parlamento, a diversidade europeia, o tradutor é um homem caído em desgraça depois de um voo para as Canárias, e é um catalisador e um ponto de chegada. “O que esta peça procura é um ‘era tão bom que fosse outra a crise’, que fosse de linguagem, cultural, que obrigam a um entendimento”, e não a crise que resulta de um número que é um défice, aspira o actor e encenador. Porque aqui e assim não há quem viva — pelo menos, aqui e assim “não há lugar para a tragédia da personagem principal, do herói da tragédia grega, não há lugar para uma Antígona, para um Édipo. Só há lugar para o todo, para a obediência colectiva”.

E saltamos do teatro para as ruas, onde Jacinto Lucas Pires é agredido por Paulo Bento, por Durão Barroso e pelo responsável das Águas de Portugal. Apanham-no no trânsito, falam-lhe pela rádio e espreitam-no nos cartazes da cerveja oficial da selecção de futebol. Dizem-lhe, cada um sobre a sua especialidade, que vivemos “numa altura em que parece que não é possível ter um pensamento” individual ou dar espaço ao questionamento ideológico. “Há uma espécie de muro do inevitável. Tem de ser assim, temos de pagar naqueles prazos e isto vai ser austeridade durante décadas…” Portanto, só resta ao dramaturgo, letrista e escritor fazer de Interpretações “um começo para pensar outra vez livremente”: “Já nem digo ser livre...”

Com selecção musical e arranjos de Paulo Lourenço, o espectáculo é um monólogo com companhia coral em que a música, de Arvo Pärt a Bach, quer também fazer uma geografia europeia. A linguagem faz poesia da estatística, contrapondo-se ao zumbido do discurso político sobre as pescas, as identidades, os transportes, um enfado feito de barras e pontos, directivas e convenções, que é quebrado, por exemplo, quando Joaquim se lança num desesperado apelo à felicidade, repetido à exaustão para que esta se lhe revele como fim último da existência. “Uma história da Europa com notas de rodapé íntimas de uma personagem”, resume Tiago Rodrigues. E com pitadas de comédia.

Jacinto sente que está a fazer “um teatro da palavra”, com honra e pragmática, “que sabe escutar”. Tiago não gosta de espartilhar tipos de teatro, mas sabe que é um “que não dá outros mundos ao mundo, é do mundo” e que é, sobretudo, “pensamento divergente”. E entram em diálogo, os dois homens unidos por um “namoro antigo” em torno das palavras: “Ir a uma sala de teatro e olhar para um espectáculo é tão real quanto meter um boletim de voto numa urna”, diz Tiago. E “a gargalhada é a arma mais séria”, sugere Jacinto.

 

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