A star e o paparazzo: cenas da luta de classes

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No conjunto de gestos que espectacularizam o género paparazzi, eis o hollaback, ou o agredido a responder ao agressor, o fotógrafo. Eis Marlene Dietrich... Daniel Angeli, Marlène Dietrich à l’aéroport d’Orly agresse un photographe [Francis Apesteguy], 1975

Paparazzi! Photographes, Stars et Artistes, Centro Pompidou, Metz. Mais de 600 obras de artistas que integraram a estética do “caçador de imagens”. E toda uma história de violência, voyeurismo, e combate. Mas também de cumplicidade, construindo cenas de uma vida conjugal – o paparazzo e a estrela. Para complexificar a imagem Dolce Vita. Não é uma exposição sobre “eles”, é uma exposição que nos põe a pensar sobre nós.

Percorreu um longo caminho desde que Federico Fellini se lembrou de uns agressivos mosquitos da planície do Pó, os papatacci, e fez a contracção com razzi, a palavra italiana para os clarões dos flashes. Pararazzi, Roma, anos 60, pia baptismal de um fotógrafo fura-vidas montado em Vespa. Assim se chamou a personagem de Walter Santesso, Paparazzo, em La Dolce Vita (1962). Terão sido os mosquitos a servir de inspiração ou se calhar, porque Federico era perito em flutuar entre versões de uma mesma história para o mito se aguentar, não foi nada disso: Paparazzo seria apenas o nome de um amigo de infância na doce Rimini.

O que quer que tenha sido, não inventou nada — como aliás disse. Bastou-lhe folhear a imprensa, onde apareciam as fotografias de bacanais em que a actriz Anita Ekberg era apanhada em flagrante em Roma. Ou dar um giro pela Via Veneto, que naqueles anos estava a ser percorrida por selvagens criaturas nervosas, ávidas, que iam de encontro às estrelas como se estivessem a ir, em alta velocidade, directas a um desastre de viação ou a uma cena de crime (como as fotos a preto e branco de Weegee, nos anos 30 e 40). Quebraram a imagem oficial — delas, é claro; mas também o retrato respeitável deles.

Juntava-se a fome com a vontade de comer. Do outro lado do Atlântico, Hollywood agonizava. O studio system fazia Marilyn mergulhar nua na piscina, mas o filme, Something’s Got to Give, também não iria viver. E mandava Elizabeth Taylor filmar Cleópatra em Roma para poder abrir o leque de pavão a preços de sobrevivência. Era isso: Hollywood-à-beira-do-Tibre como hipótese mais barata de festim. A cálida Roma, com o boom económico italiano a aquecer e a revolucionar os costumes, era o palco de uma orgia em que participavam o que restava do star-system americano, a aristocracia europeia decadente com os seus descapotáveis e os proletários paparazzi com as suas Vespas — eles vindos das aldeias italianas para ganharem a todo o custo as suas vidas. Aí se apurou uma nova versão da muito antiga, porque muito humana, curiosidade pelos famosos. Estrela, fotógrafo, público e imprensa: diabólico e brutalista pacto forjado em Roma. Na exposição Paparazzi! Photographes, Stars et Artistes que o Centro Pompidou de Metz apresenta até 9 de Junho, La Dolce Vita tem direito a toda uma sala. É a cena original de uma iconografia — porque podíamos recuar: já havia gravatas a disfarçarem câmaras fotográficas em 1890, era uma das armas dessa figura do fotógrafo como espião. O filme de Fellini é o momento de explosão pública de uma prática e dos seus rituais tal como os conhecemos hoje.

A nossa história

Mas esta não é só a história deles. É também a nossa história. Paparazzi! Photographes, Stars et Artistes mostra, em 600 obras, como é que toda a teatralidade de gestos e ritos, movimento e fuga que foi construída pela fotografia paparazzi interessou à arte. Como é que essa estética (já que não é arte, sublinham os comissários da exposição, equipa liderada por Clément Chéroux) que foi fruto das contingências (o gesto rápido, como um roubo; a distância de uma teleobjectiva, a bofetada do flash) foi absorvida pela fotografia de moda, por exemplo, e pela arte contemporânea e pelos seus autores — Richard Avedon, William Klein, Gerhard Richter, Richard Hamilton, Paul McCarthy, Cindy Sherman, Sophie Calle, Gary Lee Boas, Jonathan Horrowitz, Barbara Kruger, Alison Jackson, e outros, e outros... Que ficaram fascinados, intrigados, certamente desconfiados, mas vendo nela as possibilidades de se meterem pela aventura humana — ou então ficaram só seduzidos pelo júbilo formal e ficcional oferecido pela violência do flash, pela coreografia involuntária da mão a tapar a violação da privacidade, como que a tentar impedir a proximidade da morte, ou esse desejo de fotografar até à morte e de fotografar até a morte.

Nas salas do edifício projectado pelo japonês Shigeru Ban, Prémio Pritzker de Arquitectura 2014 Paparazzi! Photographes, Stars et Artistes é um percurso histórico e emocional. Os nossos fantasmas, ali, na Dolce Vita. Ou ali, na pintura de sofrimento que borra o rosto de uma actriz caída, Romy Schneider, violada pelo olhar do paparazzo interpretado por Fabio Testi (O Importante é Amar, filme sublime de Andrej Zulawski). O cinema utilizou as possibilidades ficcionais da figura, fê-lo criatura inquietante, filho da desordem e causador da desordem (excertos de filmes de Brian de Palma ou de Dario Argento completam a selecção da exposição; mas há também Britney Spears, logo ela, que utilizou os paparazzi em seu favor, como se nisso continuasse a herança de Diana de Gales, e que se vingou, retratando-os como máquinas infernais atrás do seu derrière, em I wanna go e em A piece of me). É tudo verdade, porque é a verdade dos fantasmas.

Complexificar o retrato

Mas complexifique-se o retrato. É o que se faz nas salas deste Pompidou. Atente-se a Reporters (1980), de Raymond Depardon, e àquela figura, fotógrafo da Agência Gamma, chamada Francis Apesteguy. Persegue um actor americano em Paris, um actor à beira de se tornar mundialmente famoso chamado Richard Gere — é Gere no pós-American Gigolo. Ele não sai do carro porque Apesteguy e os outros não saem de ao pé do carro. Quando sai, finalmente, Gere dá aos fotógrafos alguns segundos, vá, shoot!, acabem com o assunto, quer ir à vida dele — I’m a private person. Que tire então os óculos, pedem-lhe. O actor diz que não.

E os fotógrafos não fotografam, não acabam com o assunto, continuam à espera da fotografia nas suas próprias condições. O carro dele arranca, os carros deles perseguem-no — instrumento de trabalho para o fotógrafo, porque é ali que espera a sua presa, é um espaço de prisão para o fotografado, porque se o protege do exterior, também o imobiliza no interior. Os carros arrancam, mas antes Apesteguy explica à polícia que é um repórter, que está a trabalhar e que o mínimo que alguém que ganha milhões deve fazer é tirar os óculos e deixar-se fotografar. Como actualização daquela figura algo naïve, cheia de fúria e de movimento mas sem pensamento, de La Dolce Vita, o fotógrafo de Reporters aparece investido com a consciência de uma missão — chamar-lhe-emos política. A violência do gesto, que escancara a vida privada das stars com a luz cruel do flash, é momento de revelação de uma verdade. (Veja-se como duas figuras antagónicas, a do repórter de guerra, que é o mito da abnegação, e a do paparazzo, que é o estigma da ausência de escrúpulos, coincidem em gente como Nick Ut, que antes fotografou a menina a arder com napalm no Vietname e depois Paris Hilton condenada por infringir as regras de trânsito, ou Jacques Langevin, que esteve no Golfo, no Iraque, mas também na Ponte de L’Alma de Paris, nos últimos momentos de Diana.) Como se tivesse em si a impressão digital de um combate entre mundos diferentes que não se misturam, como se cobrasse à celebridade o pacto que ela fez com o diabo: eis o paparazzo como activista da luta de classes.

Compreende-se que o olhar de Depardon, em Reporters, esteja interessado na energia rebelde de Francis Apesteguy, que tem mais star power no documentário do que Gere. Depardon fora fotógrafo da Gamma, sentira na pele o estigma da profissão paparazzi — alguém que, disse numa entrevista, tanto é “adulado” num dia como “rejeitado” no outro. Este regresso à Gamma para filmar o quotidiano dos fotógrafos da agência (a cobrirem as eleições no PC francês, a tomada de posse do Governo, uma estreia de Godard na Cinemateca Francesa ou uma conferência de imprensa de Mireille Mathieu e Gene Kelly...) faz-se com uma vontade de caucionar, claro. Mas a distância acaba por se interpor, porque Depardon já era homem das imagens em movimento. É essa distância que permite uma visão sobre um mundo que começava a obedecer às regras daquilo que viria a ser denominado de imprensa people. As figuras da política, desalojada do pódio de interesse da imprensa, onde se impunham as regras da televisão, aparecem desajustadas. Tiveram, a partir daqui, de se reajustar. Reporters é um filme sobre essa vacilação, sobre o momento em que começou a instalar-se o que (ainda) é o nosso tempo. Em muitas coisas, diria Apesteguy, já não é o nosso tempo.

Ele e outros paparazzi — Daniel Angeli, Bruno Mouron, Sébastien Valiela, Apesteguy e Ron Gallela — foram entrevistados sobre os seus métodos para esta exposição. O resultado dessas conversas faz a impressão digital de Paparazzi! Photographes, Stars et Artistes: com excepção do cinismo que aflora aqui e ali em alguns (Apesteguy diz, por exemplo, que o que faz é “imobilizar uma espécie de imbecilidade monumental”; Daniel Angeli confessa que, se tivesse de escolher hoje, não seria paparazzo), há nostalgia perante uma época em que era possível a cumplicidade com a estrela. O caso de Ron Gallela com Jackie Onassis, por exemplo, a forma como esperava por ela pacientemente em Upper Manhattan, o encontro fortuito que deu origem ao fulgurante Windblown Jackie (ele apitou de dentro do táxi em que a perseguia, ela virou-se... foto... “é você?!”, e depois processo por invasão da privacidade) ou os seus combates com Marlon Brando, são cenas de um épico íntimo conjugal em que o fotógrafo também era protagonista e criador de acontecimento. Isso não mais é possível. Eis uma relação em vias de extinção não porque tenham desaparecido os protagonistas mas porque eles se multiplicaram e se banalizaram: a Internet é fluxo permanente de imagens, as celebridades estão em todo o lado, começaram a chamar-se Paris Hilton ou Britney Spears. E somos todos nós.

Da passadeira ao selfie

O circuito montado em Metz vai-nos preparando: esta não é uma exposição sobre “eles”, esta é uma exposição que nos põe a ter consciência de nós.

Atira o visitante, logo a abrir, para a passadeira, põe-no no lugar da “vítima”, atacada pelo ruído, pelos flashes, pela hidra de várias cabeças formada por câmaras, luzes e microfones que se movimenta ao sinal de presença humana: é Interview, a instalação de Malachi Farrell.

Depois, é um flashback à história da legitimação artística. Richard Avedon foi inspirar-se nos paparazzi que assim tinham sido baptizados em Roma e dava a conhecer o fenómeno à América de 1962. Fazia-o com estupefacção e ironia: uma falsa-reportagem para as páginas de moda da Harper’s Bazaar com um casal de estrelas acossado pela imprensa e sem conseguir esconder o seu amor, como Richard Burton e Elizabeth Taylor na rodagem de Cleópatra. Foram páginas fundadoras para o que vieram a fazer William Klein, Helmut Newton ou Steven Meisel.

As foto-pinturas de Gerhard Richter nos anos 60 ou o Swingeing London de Richard Hamilton (1972), ao reproduzirem de forma exagerada características da estética paparazzi, viram a mensagem contra o emissor e desencadeiam um processo de interrogação e crítica. À autocrítica submete-se a sueca Malin Arnesson: ex-paparazzi, contratou fotógrafos para a seguirem durante um ano e o resultado, The Penance (2008), é um mea culpa. Sophie Calle contratou detectives para a seguirem, em 1981, La Filature. Allison Jackson contratou sósias, de Jack Nicholson, de Marilyn e Diana (que são vistas às compras), de Isabel II sentada no trono (a sua sanita), de George Bush, que parece não resolver o cubo Kubick (sobressalto na sala: é um sósia em pessoa ou uma figura de cera?). Pascal Rostain e Bruno Mouron eram paparazzi e enquanto tal devem ter sido acusados de andar a mexer no caixote das estrelas — é o que fazem enquanto artistas, literalmente: apresentam o que Jeff Koons ou Madonna deitaram para o lixo. Em Cocaine Kate, quem olha, o espectador voyeurista, é colocado por Jonathan Horrowitz na capa do Daily Mirror, onde antes esteve Kate Moss por causa da sua soirée de cocaína. Nesta altura da viagem, o visitante-espectador encontra de novo Interview. O que se mostrara antes agressivo parece agora domado. Vai um selfie à beira da hidra de várias cabeças? O paparazzo, hoje, somos nós. 

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