"Para poder ser um país com mais crianças, Portugal também precisa de renascer"

Estancar a queda da natalidade obrigará à reformatação de todas as políticas sociais, desde a forma como trabalhamos ao sistema fiscal, passando por pôr a banca a conceder empréstimos compatíveis com a intermitência do emprego. O país mudou, sublinha o presidente da comissão, e a forma de fazer política e de nos organizarmos em sociedade vai ter de se adaptar.

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Joaquim Azevedo sublinha que Portugal nunca regressará aos níveis de emprego que já teve Renato Cruz Santos

Da redução dos preços à flexibilização do horário das creches, dos 0 aos 3 anos de idade. Do trabalho em part-time, aos empréstimos bancários que acautelem situações de instabilidade laboral. Dos incentivos em sede de IRS à necessidade da mudança na forma como nos organizamos em sociedade e perante o trabalho. O ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário de Cavaco Silva e professor catedrático na Universidade Católica, Joaquim Azevedo, já formou a comissão multidisciplinar que, até Junho, promete pôr o país a discutir o problema da natalidade. O desafio foi lançado por Pedro Passos Coelho, mas não há a garantia de que as propostas que vierem a ser apresentadas serão assimiladas pelo Governo.

Já escolheu as pessoas para trabalhar consigo neste plano de ataque à queda da natalidade?
Temos a equipa quase totalmente constituída e marcámos a primeira reunião para a próxima semana. É uma equipa multidisciplinar. Tem uma médica pediatra, [a ex-alta comissária para a Saúde] Maria do Céu Machado, a psiquiatra Margarida Neto, um especialista em direito laboral, Pedro Furtado Martins, e a especialista em fiscalidade Ana Luísa Anacoreta Correia. As famílias numerosas também estarão representadas, através de Ana Cid Gonçalves, e, na área da geografia humana, temos o professor Jorge Arroteia, da Universidade de Aveiro. Também temos a subdirectora do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, Ana Sampaio, um empresário na área dos serviços, Ricardo Luz, uma jovem mãe e outros dois jovens. Estamos a falar de muitas frentes de abordagem. A ideia é fazer uma proposta de política que seja coerente e também adaptada ao contexto em que vivemos.

Como é que se consegue criar um clima de confiança nas pessoas, que passa muito pela questão do emprego e da segurança nos vínculos laborais, neste contexto de crise?
O problema da queda demográfica não é consequência da crise, é um fenómeno que tem 30 anos. Mas não podemos fugir ao contexto e sabemos que não ter emprego, ou ter um emprego precário ou mal remunerado, o não haver incentivos, incluindo na questão da educação nos três primeiros anos, são questões muitíssimo importantes. E, para as mulheres, o problema não é só de ter ou não ter emprego, mas o de serem fortemente penalizadas no trabalho por terem filhos. Não se pode continuar a negar a possibilidade de as pessoas terem filhos. E é possível criar quadros de incentivo à natalidade. Temos exemplos de autarquias lançaram alguns incentivos e que têm tido alguns resultados.

Mas são incentivos que visam famílias carenciadas. E a questão dos filhos também se põe nas famílias da classe média que lutam para se manter à tona de água mas que não são elegíveis para os apoios camarários em vigor.
É isso que temos que estudar. Há incentivos que podem ser mais para essa população de classe média. A questão do trabalho a tempo parcial que é preciso estudar mais aprofundadamente…

… que já tem sido criticada.
…por poder ser penalizadora para as mulheres no tocante à sua progressão profissional. Mas ela tem que ser posta em cima da mesa para vermos em que condições é que pode ser desenvolvida sem ter essa componente de prejuízo. Depois há o teletrabalho, que pode cruzar-se com o trabalho a tempo parcial, os horários, a possibilidade de haver outra forma de distribuir o tempo de trabalho. Há claramente aspectos em que podemos mexer.

A questão das creches…
...sim, dos zero aos três anos, que é uma questão central, porque essa idade tem sido muito esquecida nas políticas públicas. Aqui tem que ser criado um quadro que seja mesmo muito favorável à possibilidade de as pessoas terem as creches a preços muito acessíveis, por um lado, e com horários adaptados, por outro.

E quanto ao facto de o número de filhos ser quase irrelevante para cálculo da taxa de IRS?
Queremos que isso se inverta. Temos que estudar isso mas é claro que tem que haver uma política fiscal diferente, sobretudo para as famílias com mais do que um filho.

Já o ouvi defender a necessidade de um trabalho em conjunto com a banca no sentido de agilizar mecanismos de apoio às famílias que tem ou querem ter filhos. Como?
O ‘como’ tem que ver com os sistemas, não tanto com as famílias. Tem que ver com podermos ter a banca a estudar mecanismos de empréstimo às pessoas que ultrapassem as dificuldades nos momentos de desemprego. Tem que se convidar o sistema bancário a estudar essa questão e perceber até que ponto – e isso existe noutros contextos internacionais – se pode criar sistemas de empréstimo às famílias que se mantenham estáveis, embora a vida das pessoas – trabalho, emprego… – se tenha tornado muito mais instável. Porque, por mais que a gente diga que havemos de sair desta crise, nunca mais haverá o nível de emprego que havia. A economia evoluiu para um modelo que é muito pouco dado à estabilidade.

Será possível inverter a marcha nesta tendência de promoção ou pelo menos de aceitação de vínculos precários, recibos verdes e de facilitação dos despedimentos?
Mas isso não começou agora. Isso já tem 20 anos.

Mas agudizou-se.
Sim, mas não me parece que seja essa a razão para a quebra na natalidade. Mesmo essa questão de liberalizar os despedimentos tem pouquíssimos meses, não podemos dizer que é isso que está a dificultar os nascimentos.

Se concordarmos que a incapacidade de planear o futuro, a médio e até a curto prazo, tem muito que ver com essa instabilidade laboral…
O rumo que a economia leva não é exclusivo de Portugal. Em qualquer sítio do mundo, a precarização dos vínculos laborais, a incerteza quanto à evolução das carreiras, a imprevisibilidade sobre quantos empregos e quantas actividades as pessoas vão exercer durante os 50 anos de vida profissional são totais. Mas esse não é um problema que tenha que ver com Portugal nem com esta crise. Já era assim antes, é assim agora e vai ser pior no futuro. Isso, claro, coloca cenários muito difíceis para os casais jovens terem filhos e vai exigir que esses mesmos casais pensem, juntamente com as instituições, formas diferentes de organizar a nossa vida comum. Vai ser preciso reordenar muitas coisas na sociedade se queremos um país com mais crianças.

França tem feito um esforço de promoção da natalidade que passa por licenças pós-parto até um máximo de três anos, creches gratuitas, actividades extracurriculares quase gratuitas, descontos em supermercados, autocarros…
Uma das coisas que não temos são limitações de espécie nenhuma do ponto de vista das propostas que possamos fazer. A proposta nasce no quadro de um congresso, há um líder de um partido que diz que quer colocar a questão na agenda, e esse líder também é primeiro-ministro. Há um grupo que pega nisso, a partir daí competir-nos-á desenvolver essa reflexão, ouvir pessoas, e fazermos a nossa proposta, que, claro, é no quadro do PSD. Mas, somos maioritariamente independentes, não somos do PSD, e faremos a nossa proposta ao conjunto da sociedade portuguesa também. Acho que há aqui uma oportunidade. A situação é muito dramática, e, apesar disso, há cidadãos que desconhecem essa situação, este risco de perdermos quatro milhões de habitantes até ao fim do século.

O risco de chegarmos a 2060 reduzidos a 6,3 milhões, se os saldos migratórios continuarem negativos e mesmo que consigamos manter a natalidade nos níveis actuais.
As migrações podem ajudar a resolver uma parte do problema mas não são a solução. A não ser que abramos as torneiras de Ceuta e de Melilla e deixemos entrar os imigrantes necessários para repor os níveis demográficos. A questão é que a situação do país não é favorável a isso. Por isso, o caminho passa por nós, portugueses, assumirmos outra atitude perante o problema.

Problema que é agravado pela emigração dos portugueses em idade de procriar, com o beneplácito do primeiro-ministro que os desafiou a procurar trabalho lá fora.
Sim, e isso só serve para agravar o problema.

O que nos leva à questão da desconfiança perante um propósito que parte do mesmo responsável que, noutras frentes, tem tomado medidas que agudizam esta quebra de natalidade.
Mas nada me diz que não se possa melhorar o quadro de políticas. Este Governo, ou outro que venha a seguir, vai ter que cumprir as metas de controlo orçamental. Portanto, a questão não é ser este primeiro-ministro ou este Governo. Podemos ter políticas sociais diferentes, mas estaremos sempre a falar de políticas que sejam compatíveis com a situação que o país tem. Este Governo não a nega, os que vierem a seguir também não a podem negar. Portanto, a questão é encontrar prioridades diferentes para as políticas sociais que são o fulcro disto: trabalho, incentivos fiscais, creches. Não se trata de uma questão financeira, mas da criação de um quadro mínimo de confiança nas pessoas. E esse quadro de confiança tem que existir também por parte dos dirigentes políticos. O que temos tido é pouca capacidade de focar, de desenvolver políticas de controlo orçamental, e de, ao mesmo tempo, conciliar isso com políticas que permitam abrir horizontes de esperança às pessoas. O país nunca mais sairá da crise se continuarmos atolados numa forma de olhar para um país que já não existe. Na minha óptica, e na óptica do grupo que criei, há aqui uma oportunidade que vale a pena agarrar e trazer para cima da mesa. Vale a pena pensar que Portugal, para poder ser um país com mais crianças, também precisa de renascer.

E isso passa também por fazer regressar os emigrantes, como dizia o secretário de Estado Pedro Lomba?
A realidade por que Portugal está a passar no que diz respeito à emigração jovem tem que ser transformada numa oportunidade para o país também. Essas pessoas puderam fazer uma experiência de ganhar mundo, vamos então aproveitar esse mundo que as pessoas ganharam e chamá-las para desenvolver projectos no país. Claro que estaremos sempre a falar de nichos. Estamos a perder cerca de 100 mil pessoas por ano e não é possível trazer de volta essa população toda. Mas, e volto sempre ao mesmo, tem que haver é o tal quadro de confiança. Confio muito nos municípios e na possibilidade de, no quadro de alguns municípios, se poderem desenvolver quadros muito favoráveis ao regresso de emigrantes jovens, à natalidade, incentivada quer directa quer indirectamente, com outra política de preços e outra forma de, nesse mesmo perímetro, trabalhar a questão empresarial para termos empresas amigas das crianças. Se pudéssemos ter o poder local também muito focado nesta questão, certamente teríamos efeitos - lentos mas sustentáveis.

Dizia há pouco que nunca mais voltaremos aos níveis de emprego que tivemos. Aquilo que muitos especialistas defendem, neste quadro de envelhecimento demográfico, é que se possa aligeirar a carga horária no período intermédio da vida para que as pessoas possam, por exemplo, ter filhos, prolongando depois a carreira até uma idade mais avançada.
E por isso é que digo que esta crise pode ser uma oportunidade em relação a esta questão social. Não vamos, é claro, puxar por um fio que vai pôr em movimento as outras coisas todas, mas a natalidade é seguramente uma ponta das mais sistémicas e que nos permite pensar o quão desordenadas estão as políticas sociais em relação à realidade. A realidade do mundo do trabalho mudou brutalmente nos últimos 10 ou 15 anos e nós mantivemos as políticas quase inalteradas. Há aqui uma oportunidade de ver Portugal de outra maneira, de fazer renascer a maneira como o país se vê, se pensa e se projecta no futuro.

Isso implicará opções políticas que vão muito para além dos ciclos eleitorais.
Pois, estamos a falar de horizontes de 20 ou 30 anos, no mínimo.

E acha que há condições para os partidos do “arco da governação” se concertarem?
Não acredito muito. Eu acho que os partidos e os governos têm o seu papel. Mas eles são apenas uma parte, e uma parte pequena, daquilo que é um país e uma sociedade. É preciso é mobilizar também outras forças e outras capacidades que o país tem e que estão muito dormentes porque embaladas nesta dependência absoluta do Estado central e dos Governos.

Mas delegar tarefas nas autarquias esbarra no problema dos cofres municipais depauperados.
Mas nem tudo é dinheiro. Nós não podemos olhar para os problemas e achar que os resolvemos pondo dinheiro em cima deles. Só os estragamos. A questão não é só financeira. Tem muito que ver com essa engenharia social. O Estado Social custa muitíssimo dinheiro. Se temos tantos recursos, a questão é a de sermos capazes de reorientar a forma como os usamos, a favor da autonomia das pessoas, do empreendimento das pessoas, da sua capacidade de iniciativa, solidariedade e de resolução dos problemas que enfrentam. Nós estamos a caminhar para um mundo muito diferente. E Portugal é um país espectacular para dar esta volta: não somos um país subsariano com dificuldades brutais de recursos, não somos um país sul-americano, que não tem recursos qualificados suficientes. Nós estamos na Europa, estamos muito bem estruturados, temos uma massa qualificada brutal - foi um dos grandes investimentos do pós-25 de Abril -, temos um Estado Social bastante bem organizado, condições óptimas. Precisamos é de fazer bastante diferente as coisas que fizemos mal e que já não estão a ser justas nem eficientes nem eficazes agora. O mundo mudou muito. O que mudou menos foram as políticas, os partidos, e a forma de governar.

Não houve à partida nenhum compromisso, por parte de Pedro Passos Coelho, no sentido de garantir a assimilação pelo Governo das propostas que vierem a ser apresentadas?
A proposta é realizada no quadro do Instituto Francisco Sá Carneiro e não podia haver esse compromisso. Não podia até porque, se houvesse, viriam logo outros a seguir dizer que não podíamos fazer isto ou aquilo. Vamos reunir, vamos ouvir, fazer workshops, convidando, por exemplo, as câmaras que têm incentivos de apoio à natalidade no terreno, discutir as potencialidades e as possibilidades de cada modelo, juntar os protagonistas das diferentes políticas ou subpolíticas, para nos irmos aproximando de uma leitura macro do problema que nos permita no fim, lá para Junho, fazer as nossas propostas.

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