Universidade, ensino e sociedade

Seria desastroso que a Universidade se limitasse a alinhar pelas necessidades das empresas.

Num artigo intitulado Universidade, ciência e sociedade, recentemente publicado neste jornal (19 de Fevereiro), afirmei ser inquestionável que a verdadeira essência da Universidade é ser um espaço de conhecimento, de ideias e ideais, de criatividade, que interage aberta e criticamente com a sociedade que a rodeia.

O que considero questionável, em termos conceptuais e estratégicos, é a forma como a Universidade projeta na sociedade, pela sua prática, as responsabilidades que decorrem daquela sua essência. Sobre isso, não se pode deixar de ter em consideração a opinião da sociedade, a quem cabe perguntar-se o que reclama, e espera, da Universidade.

Ensinar, educar e formar pessoas é a primeira e mais importante missão da Universidade.

Contudo, de um modo geral, a investigação científica é mais relevante do que o ensino para o processo de promoção dos professores, e quando um docente universitário vê a sua promoção dificultada ou negada é por deficiente atividade de investigação, e não por ser mau professor.

Atualmente, o motivo principal de conversa entre os professores universitários não é o ensino e as suas dificuldades e problemas, e não se trocam impressões e experiências sobre como ensinar bem. Atualmente, o que mais ocupa a mente dos professores universitários é a investigação científica e a obtenção de bolsas e verbas para a sustentar.

No entanto, não se verifica haver correlação direta entre ser bom investigador científico e ser bom professor. São muitos os exemplos de bons investigadores científicos que não são bons professores, e são também muitos os exemplos de bons professores que não fazem investigação científica mas têm, de alguma maneira, um profundo e atualizado conhecimento das matérias que ensinam – ter um bom e atualizado conhecimento dos assuntos que se ensina é, sem dúvida, uma condição necessária… Ninguém pode ensinar o que não sabe…

Isto não deve ser interpretado como significando que os professores universitários podem ser dispensados de fazerem investigação científica. Eles devem exercer as duas atividades, complementando uma com a outra, até porque fazer investigação científica é, por um lado, um meio de obter o conhecimento necessário para ensinar e, por outro lado, a forma de praticar a procura do conhecimento, atitude que deve ser transmitida aos alunos no seu processo de aprendizagem. O que não deve é menorizar-se uma das atividades, a de ensino, em relação à outra, a de investigação científica.

O processo de aprendizagem exige um ambiente ativo e criativo, com o qual o aprendiz estabeleça contacto de modo a relacionar os conhecimentos que vai adquirindo com os conhecimentos já adquiridos e com a realidade.

Nenhum estudante aprenderá bem se o processo de ensino/aprendizagem não corresponder aos seus conhecimentos prévios, às suas capacidades e aos seus objetivos e expectativas. A vontade de aprender é indispensável para aprender, mas essa vontade depende, claramente, daquela correspondência.

Concentrar estudantes numa escola, dividi-los em cursos especializados, e depois sujeitá-los a aulas de exposição cheias de modelos abstratos são condições adversas para a natureza própria do processo de aprendizagem, provocadoras de atitudes que nada têm a ver com a emoção de aprender, natural em qualquer ser humano. A forma como as escolas estão concebidas e organizadas atua, para a maior parte dos estudantes, como inibidor do processo de aprendizagem.

Mas, com a massificação do ensino, não é, pura e simplesmente, possível respeitar a natureza do processo de ensino/aprendizagem porque não é, pura e simplesmente, possível atender cada estudante de modo a corresponder aos seus objetivos e promover as suas características e capacidades próprias.

A democratização do acesso ao ensino, particularmente ao ensino universitário, é um fenómeno relativamente recente em Portugal. Nos meados do século passado, frequentavam a Universidade cerca de 15 jovens em cada 100 na idade própria. Atualmente, quase 100% frequentam, ou podem frequentar, o ensino superior, embora se esteja a verificar um decréscimo no número de jovens que, após o secundário, procuram o ensino superior… talvez porque não se reveem nele…

A resposta da Universidade a este fenómeno, a todos os títulos positivo, foi a massificação do ensino e o abaixamento da exigência à entrada, durante e à saída.

A Universidade não conseguiu (sei que é difícil…) adaptar percursos e metodologias à realidade de um elevado número de alunos de níveis e com características de interesses muito diferenciados, muitos deles desinteressados por aquilo que lhes ensinam, sobretudo pela forma como lhes ensinam. E assiste-se e toleram-se níveis elevados de insucesso escolar. E aceita-se que os alunos possam prosseguir desde que saibam alguma coisa… mesmo não entendendo nada!

A resposta adequada à democratização do ensino superior, ao contrário da massificação, é a diversificação, e a seleção a ela inevitavelmente associada, mantendo elevados níveis de exigência conforme as diferentes opções oferecidas.

A este respeito, dois pontos parecem bem claros.

O primeiro é que nenhum (ou quase nenhum) estudante frequenta uma Universidade apenas por querer aprender mais e melhor. Ele quer também que o conhecimento adquirido seja reconhecido e valorizado. Isso deve ser considerado como um facto normal, inerente à própria natureza humana, e deve ser tido em consideração em qualquer diversificação do  processo de ensino/aprendizagem.

O segundo, também a ser tido em consideração, é que um aluno normal coloca a fasquia das suas ambições não muito alto: apenas vir a ser um profissional com algum prestígio social e razoavelmente pago (numa sociedade em que mesmo o simples desígnio de trabalhar e ser pago não é fácil de atingir, essa atitude parece normal).

Aceitando estes dois factos, conclui-se que um estudante normal não estará motivado para aprender se não acreditar que está minimamente garantida a utilidade profissional daquilo que lhe está a ser ensinado.

Se quisermos ter escolas eficientes, os professores devem, portanto, assumir o encargo de evidenciar aos estudantes a utilidade profissional daquilo que estão a ensinar-lhes, fazendo esse encargo parte integrante do ato de ensinar.

Mas é necessário compreender que, mesmo para os alunos normais, o ensino não deve confinar-se ao imediatamente útil, mas sim que evidenciar a utilidade do que se ensina deve fazer parte do ato de ensinar, e que tal deve preceder o tentar atingir objetivos mais elevados em que a evidência da utilidade vai sendo menor.

Não é um encargo fácil de satisfazer. Isto implica o risco de uma deriva de uma formação mais fundamentada para uma formação mais descodificada e orientada para as aplicações imediatas. Atualmente, até há quem pretenda que a Universidade prepare os profissionais de que a sociedade precisa de imediato.

Seria, no entanto, desastroso que a Universidade se limitasse a alinhar pelas necessidades das empresas. A Universidade não pode, contudo, furtar-se a essa obrigação. Mas também não pode, desgastada com essa tarefa, deixar de praticar um ensino mais fundamentado e de elevado nível.

É, então, necessário tomar medidas de diversificação do sistema de ensino que protejam os alunos, e a própria sociedade, dos efeitos perversos da referida deriva, garantindo percursos e ambientes adequados para os alunos mais motivados para uma formação mais fundamentada e criativa.

Professor catedrático, coordenador do Comité de Tecnologia do Grupo EFACEC

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