Guimarães anda a estudar as Nicolinas, mas pode nem as candidatar à Unesco

Contrariando uma certa moda, o município admite que a inscrição na lista mundial de património imaterial só acontecerá se for vantajosa para o concelho e para as próprias festas.

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O cortejo do pinheiro, na abertura das festas, atrai milhares de pessoas, muitas delas forasteiras Luís Efigénio/NFactos

O estudo antropológico sobre as Festas Nicolinas encomendado pela Câmara de Guimarães está a ajudar o concelho a reflectir sobre as vantagens, e eventuais desvantagens, de uma candidatura desta manifestação dos estudantes do secundário a património imaterial da Unesco. O estudo foi encomendado quando entre os vimaranenses se propunha a internacionalização das festas, mas o investigador Jean-Yves Durand, do pólo da Universidade do Minho (UM) do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), tem sérias dúvidas sobre o impacto externo de uma possível classificação mundial.

Jean-Yves Durand, que termina por estes dias um trabalho de quatro anos no Museu da Terra de Miranda, já perdeu a conta às notícias que vai lendo sobre intenções de candidaturas portuguesas à lista de património imaterial da Unesco, na qual já está o Fado e poderá entrar, este ano, o Cante Alentejano. É uma moda, admite o antropólogo, lembrando que, curiosamente, o Fado é do mundo, mas não está ainda sequer inscrito no Inventário Nacional de Património Imaterial porque, quando o país o propôs, ainda nem tínhamos transposto a Convenção da Unesco que chamou a atenção para a salvaguarda deste tipo de manifestações ligadas à tradição e identidade dos povos.

O mesmo se passa com as festas organizadas pelos estudantes do ensino secundário de Guimarães. Antes sequer de se proporem ao planeta, será preciso conseguir a classificação a nível nacional, o que para Jean-Yves Durand não parece levantar dificuldades. A permanência no tempo – as Nicolinas, ainda que noutras formas de organização, estão regulamentadas desde o século XVII –, a sua originalidade no contexto nacional e a sua inscrição na vida da cidade, que naqueles primeiros dias de Dezembro adere aos seus vários momentos com intensidade, são argumentos fortes. Mas é preciso saber se isso chega para convencer o painel da Unesco.

E é preciso saber também se a cidade tem vantagens nessa classificação. O vereador da Cultura, José Bastos, assume todas as cautelas levantadas no estudo já feito, ainda que não finalizado, pela equipa liderada pelo antropólogo francês da UM. “Há uma certa confusão entre os efeitos na visibilidade internacional de uma classificação de património material, como a que temos no centro histórico, e as vantagens de pertencer à lista de património imaterial”, nota o autarca.

Jean-Yves Durand tinha feito o teste nos debates, sempre muito participados, em que interveio, a propósito do seu estudo. A dada altura perguntou, para a plateia, quem conhecia as manifestações culturais espanholas com classificação mundial. E só uma pessoa conseguiu apontar algo mais que o Flamenco.

Entre tradições linguísticas, musicais, teatrais e festas populares, o país vizinho tem onze manifestações com classificação mundial. Mas o impacto disso, do lado de cá, está por medir. Ainda que admita ser necessário estudar as festas nas vertentes da economia e do turismo, entre outras, José Bastos até acredita desde já que a cidade não poderia esperar muito, do ponto de vista turístico. As festas realizam-se no início de Dezembro, época baixa, e – argumenta – o simbolismo deste tipo de iniciativas é muito mais compreendido pelos locais. E, diga-se de passagem, é esse sentido comunitário, vivido por quem é de dentro, que as torna importantes, o que leva o vereador a considerar que até se possa partir para o crivo da Unesco apenas para reforçar o já fortíssimo sentido de pertença dos vimaranenses e a auto-estima da população, se se considerar isso essencial.

No trabalho já realizado, que há-de dar lugar a um livro, Jean-Yves Durand assinala inclusive que a festa já mostra, no seu número mais famoso, o cortejo do Pinheiro, o risco do excesso da fama. Para lá dos milhares de vimaranenses que, vivendo fora, marcam férias e folgas para estarem na cidade nesta altura do ano, o desfile de abertura marcado pelo toque de caixa atraiu nos últimos anos muitos forasteiros da região, levando o caos – rítmico até a um evento que tem, como toda a tradição regulamentada, uma cadência que seria de respeitar.

Esta consequência do sucesso, que para alguns nicolinos mais tradicionalistas é visto como um problema, acaba por ser importante para a reflexão que a cidade tem que fazer. Afinal, uma classificação, nacional ou internacional, visa a salvaguarda de uma dada tradição, não o seu abastardamento e transformação numa imensa e indistinta animação de rua, como a alguns pareceu.

O antropólogo do CRIA chama a atenção para outro aspecto: o consumo excessivo de álcool e as praxes, tradições “não escritas” e muito presentes nestas festas estudantis, organizadas por uma comissão de alunos que tem por trás a associação dos velhos nicolinos, de antigos estudantes, podem emperrar uma candidatura à Unesco. Da mesma forma, a exclusão das mulheres da organização, apesar de uma crescente participação destas nas festas, pode ser um problema.

José Bastos concorda, mas só em relação à participação feminina. Quanto ao álcool e às praxes, o vereador vê-os como algo que não tem que ver com a origem das festas, mas que resulta das formas contemporâneas de vivência juvenil, pelo que não acredita que pudessem prejudicar uma candidatura das Nicolinas. Em todo o caso, o autarca insiste que o concelho tem de continuar o debate, com base num conhecimento sólido, que está a ser construído com o apoio dos académicos. “O sentir vimaranense coloca muita emoção nas coisas que são suas, mas é preciso trabalhar com base no conhecimento que as ciências sociais podem trazer”, alerta.   

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