Teatro e religião: humanidades

Uma reflexão-pergunta no Dia Mundial do Teatro.

Ao comemorar-se hoje o Dia Mundial do Teatro, julgo que não será preciso lembrar e reproduzir o que está dado como adquirido sobre a íntima ligação milenar do teatro às religiões. Não apenas no berço greco-latino, ligado às sagrações a Dionísios e a Baco, ou no seu ressurgimento na Idade Média através da Igreja Católica, mas indo até outros continentes, como o teatro de sombras em Bali, na Ásia (anterior ao apogeu da civilização da Grécia Antiga), ou mesmo nas raízes de ritos e danças teatralizados em África e na América pré-colonizações.

Nem sempre eles conviveram bem entre si, mas souberam ultrapassá-lo e hoje, da parte da Igreja Católica há mesmo um apelo à confluência de práticas e troca de ideias. A convocatória de artistas para o diálogo na Capela Sistina, ainda com Bento XVI, comprova-o, tendo, mesmo em Portugal, sido replicada pelo então bispo do Porto, hoje cardeal-patriarca, num encontro para onde tive a honra de ser convidado e em que participei. Aliás, se olharmos atentamente para o conceito evangelizador de Francisco I, trazendo o carácter da missão terrena do Cristianismo para um apelo a um novo e empenhado Humanismo, ainda mais concreta se faz o que foi ideia. Em tempos de hedonismo descartável, ausência de solidariedade e compaixão, carácter utilitário da Pessoa Humana reduzida à condição da materialidade produção/consumo, ignorada na sua Espiritualidade, encontramos na marca do novo Papa o prolongamento aprofundado dessa confluência das artes com a Espiritualidade, na beleza e na expressão de sentimentos e pensamentos. Ou, recuando, em tal se inclui o diálogo ecuménico, reaberto com João XXIII e retomado por João Paulo II, extensível à discussão benigna com ateus, por parte da Igreja Católica; ou também os encontros do Dalai Lama com cientistas ocidentais para perceber o que o Homem substantiva e essencialmente é.

O Homem, ponte e veículo destas aproximações entre religião e artes — na sua dimensão/observação de índole metafísica e religiosa, na teologia ou no estudo antropológico e da própria etologia, na dimensão psicológica ou sociológica — está no epicentro de todas as Humanidades, tal como estas são o sol dos planetas culturais, se assim se pode dizer.

Por isso, a questão que aqui me traz hoje, neste dia, não é tanto coisa específica do teatro, mas do teatro nesse contexto. A minha perplexidade já não incide sobre as políticas culturais, ou sua ausência. O que me obriga a uma reflexão-pergunta é um acontecimento recente, que passou bastante ao lado para a relevância que tem, apesar de parecer anedótico. E preocupante porque mesmo o responsável máximo da governação, presente no acontecimento, nem uma palavra de “rectificação” fez.

Refiro-me a afirmações de um putativo candidato a primeiro-ministro, porque membro de uma “jota partidária” e é deste caldo que eles têm saído, cada vez com mais frequência, piorando de sucessores para sucessores as incompetências políticas, técnicas, científicas, éticas, ideológicas, culturais, de sensibilidade social e mesmo de conhecimento da realidade real. A afirmação desse rapazelho, de que o ensino obrigatório deveria baixar ao 6.º ano de escolaridade e desse poderia (mesmo a nível superior) ser excluído o estudo das Humanidades, por serem “inúteis”, é, por si mesma, geradora de pânico. Mas se a isso acrescentarmos um matemático competente (embora a matemática para o vulgo seja, disparatadamente, uma igual inutilidade e uma “chatice” para os alunos), quando feito ministro da Educação, a dizer que, para ele, as Ciências da Educação estão ao nível das ciências ocultas (!), a questão adquire outra seriedade, obrigando a reflectir-perguntar se é o mesmo que pensam da religião e porque o não dizem, ou se a poupam apenas na intenção de substituir o conceito de Santíssima Trindade por Deus-Mercado, Deus-Sector Financeiro e a Sobreexploração Santa!

Aterroriza este paganismo, lembrando o das cruzes suásticas, poder militarizado, com guetos judeus e igrejas incendiados em Varsóvia, que provocaram o início da 2.ª Guerra Mundial. Não que esse terrorismo de Estado se tenha consumado totalmente, mas barbaridades destas indiciam-no em forma larvar. Incomodam-lhe as Humanidades porque a Religião coloca valores acima do utilitário, as Artes desencadeiam sensibilidades, a Filosofia faz pensar, a História traz memória, as Línguas permitem comunicação com outros povos, a Psicologia questiona-se sobre a mente e os comportamentos da Pessoa e não do indivíduo, a Sociologia trata do socialmente activo e não do indivíduo isolado, as Ciências da Educação contribuem para potenciar e compreender a aquisição e transmissão de conhecimentos, etc., etc., etc..

É que tudo isto, as disciplinas das Humanidades, como no étimo da palavra religião, é onde reside o carácter de re-ligare a Humanidade em comunidade.

Encenador, castroguedes9@gmail.com

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