A fábrica foi abaixo e Fernando foi para um quarto

Câmara do Porto ordenou demolição de fábrica que servia de abrigo e sala de chuto e avisa que fará o mesmo se situação se reproduzir.

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Demolição de antiga fábrica de sabão do Porto vai durar uma semana Mariana Correia Pinto

Fernando estava a dormir quando a Polícia Municipal do Porto entrou no que já foi uma fábrica. Não a esperava tão cedo. Nem seriam cinco da madrugada. Irritou-se com a luz apontada para si. Irritou-se com a ordem para sair de imediato. Tem andado a dormir tão mal. Ainda ali tinha tudo o que era seu.

No dia marcado para a demolição, Fernando não estava sozinho na fábrica que lhe serve de tecto desde que saiu da prisão – há oito meses. Lá dentro, estavam outros dois toxicodependentes, sem casa, sem trabalho, sem retaguarda. Não reagiram tão mal como ele. Ele exaltou-se. Um polícia atirou-lhe gás pimenta. Outro conduziu-o até à 15.ª esquadra.

Não era uma surpresa a abater-se sobre os restos da fábrica Comanor – outrora Aluminia. A operação fora sendo preparada ao longo de dois meses pela Câmara do Porto e alguns parceiros. Na sexta-feira, a Polícia Municipal colocou uma fita em torno do conjunto de edifícios, devolutos há mais de dez anos, e avisou quem ali estava que, a partir daquele dia, ninguém podia lá dormir.

Já antes, os 14 toxicodependentes que dormiam na velha fábrica, junto ao Bairro Dr. Nuno Pinheiro Torres, mais conhecido por PT, tinham sido abordados por técnicos da Norte Vida em articulação com a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo. Quatro tinham sido realojados. Um ocupou a única vaga que havia no centro de acolhimento temporário Casa da Vila Nova. Três ficaram em quartos de pensão. Faltava Fernando. Os outros teriam encontrado lugar em casa de familiares ou amigos ou num buraco qualquer ali perto.

Surpresa, a existir nesta madrugada de segunda-feira, seria noutro lugar. Para evitar que os proprietários interpusessem uma providência cautelar, a operação fora preparada sem qualquer alarido. Na sexta-feira, uma advogada tentou marcar uma reunião em nome dos proprietários, mas a autarquia, que já tomara posse administrativa daquela propriedade, protelou o encontro. Não os conseguira notificar. Um edital fora emitido, fazendo um ultimato: os proprietários tinham 45 dias para agir. Quinta-feira, terminara o prazo que lhes fora concedido.

 “Numa cidade livre ninguém é completamente dono do seu pedaço, pelo menos se não souber respeitar-se e se não souber respeitar os seus vizinhos”, haveria de comentar, já perto das 17h, o presidente da câmara, Rui Moreira. Limpar esta paisagem fora uma promessa eleitoral.

Por ali passavam centenas de pessoas todos os dias. Não era só a prostituição e o consumo de drogas num lugar insalubre. Era também a existência de placas de amianto em avançado estado de degradação a inspirar cuidado. E a falta de sossego dos moradores do PT.

O bairro dormia ainda quando Fernando regressou da 15.ª esquadra. Na Rua da Pasteleira, que dá acesso ao terreno – murado, com 130 metros de comprimento por 95 de largura – havia um rodopio de polícias, jornalistas, funcionários municipais. No passeio, em parte cobertos com um edredon, alguns dos seus pertences. Engoliu os protestos. Tinha olhos irritados. Doíam-lhe. Estava a lacrimejar.

O Sol mal começara a levantar-se. Eram cerca de 6h30. Para garantir total ausência de vida humana naquela espécie de encruzilhada de consumidores e consumidores-traficantes que se abastecem de heroína, cocaína e haxixe no PT, no Aleixo e na Pasteleira Nova, entrava em acção uma brigada cinotécnica.

O Porto não tem uma brigada especializada em resgate. Aquela viera de Lisboa, de propósito. Os quatro cães percorreram o chão de dejectos, cobertores, roupas, invólucros de seringas e outros desperdícios. Um cão feriu-se numa pata e teve de ser assistido por uma equipa do Instituto Nacional de Emergência Médica.

A operação mobilizou grande parte dos pelouros da câmara municipal, em particular acção social, da protecção civil, da fiscalização e do ambiente. E Manuel Pizarro, vereador da acção social, eleito pelo PS, quis dar uma volta depois de os cães saírem e antes de as máquinas entrarem.

O bairro dormia quase todo ainda. António Leite, de 56 anos, abriu a janela e deparou-se com o corrupio. “Já devia ter sido há mais tempo.” Nunca se sentiu ameaçado. “Não se metiam com ninguém. Viviam no entulho. Às vezes, faziam fogueiras. Vinham aí os bombeiros.” Não é que houvesse muito para arder, mas era uma fumaceira. Por vezes, zangavam-se uns com os outros. Era uma gritaria.

Faltavam cinco minutos para as 8h quando as máquinas cruzaram o portão. A giratória começou por desfazer as paredes do edifício maior, em forma de L, com cave, rés-do-chão, primeiro andar e arrumos. Alguns moradores terão acordado com o barulho. Quase ninguém ficou a ver.

Maria José Costa, de 50 anos, não via utilidades nas demolições. Lembra-se do que aconteceu no Bairro de São João de Deus, na zona Oriental do Porto, e no bairro do Aleixo, a poucos minutos dali. “Foi a maior c... que o Rui Rio [anterior presidente da Câmara do Porto] fez. Ele não acabou com o flagelo da droga. Ele espalhou o flagelo.” O movimento no Pinheiro Torres aumentou com o plano de demolição do Bairro do Aleixo. “Toda a gente aplaudiu de pé!” A ver a máquina desfazer tijolo, cimento, arame, perguntava-se: “E agora?”

Lá para a tarde, Rui Moreira haveria de falar sobre isso: “Não fazemos milagres, não podemos pensar que o problema se resolve num dia, mas tenho a certeza que a concentração que aqui se verificava, a impunidade que aqui se sucedia, não será replicável noutra parte da cidade, e, se for, agiremos da mesma forma.” A essa hora, Fernando já estava no quarto que lhe fora arranjado. Dos outros, os que dormiram com ele a última noite na fábrica, não sabe.

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