Do insanável consenso

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Os beijos roubados já não são o que eram. Há alguns dias, surgiu nas redes sociais uma série de fotografias em que estranhos beijavam estranhos. Rapidamente, a coisa tornou-se viral, como agora se diz. Veio a saber-se que era uma estratégia de marketing. Onde foi parar a espontaneidade? Em Portugal, a ideia pegou, mas de outra maneira. Foi mais ou menos por essa altura que o PÚBLICO divulgou, em primeira mão, o Manifesto dos 70 a favor da renegociação da dívida. Entre os signatários, multiplicavam-se os nomes daqueles que, assinando este documento, se beijavam pela primeira vez. Manuela Ferreira Leite e Francisco Louçã, por exemplo, quem os teria imaginado alguma vez na mesma trincheira? Sou adepto da teoria de que entre certos governantes e certos deputados da oposição se estabelecem relações de amor/ódio. Era o que via sempre que Ferreira Leite, quando ministra das Finanças, respondia, com elevado respeito académico, a Francisco Louçã. Nos tempos que correm, sinto um clima semelhante entre Passos Coelho e Catarina Martins. Mas não vejo estes dois a assinarem um manifesto daqui a dez anos.

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Passos Coelho e Angela Merkel nesta terça-feira, em Berlim ODD ANDERSEN/AFP

O Manifesto dos 70 provou que afinal o consenso em Portugal existe, mas no sentido oposto ao que o Governo pretende. Em vésperas da visita à sra. Merkel, o primeiro-ministro não gostou nada da brincadeira. Ainda por cima, o Presidente da República, enquanto vai, também ele, entoando a melodia do consenso, ofereceu ao Governo um veto político. Passos Coelho percebeu que estava na hora de, também ele, beijar um estranho. E convidou António José Seguro para ir a São Bento, a tempo de a fotografia dos dois juntos ser publicada nos jornais antes do encontro com a chanceler, em Berlim.

Sem surpresa, o líder da oposição não deixou que lhe roubassem um beijo. E acrescentou uma nova palavra-chave aos termos que compõem esta crise. A “consenso” e a “irrevogável”, Seguro acrescentou um solene “insanável”. Ficávamos sem entender para que foram precisas três horas para os dois ficarem a saber o que já sabiam. Seguiu-se o pim-pam-pum dos inflamados amuos e contra-amuos entre PSD e PS, uma conversa vazia que o país justamente despreza e deixa correr em circuito fechado.

Só em Berlim e nos beijos maternais de Angela Merkel, Passos encontrou consolo. A chanceler precisa do bom aluno para não se ver grega perante os seus eleitores e faz de conta que perdoa tudo. Portugal pode escolher o programa cautelar se bem o entender. E desfez a tragédia do consenso perdido. Quase uma carta de amor. Mas se há algo insanável nesta crise, é que o único consenso que conta é o que a chanceler pensa. Só que ela, tal como a rapaziada cá de casa, nem sempre diz aquilo que pensa. Há amores assim... 

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