Ministério dos Negócios Estrangeiros quer integrar o Arquivo Histórico Ultramarino na Torre do Tombo

Tutela avançou ao PÚBLICO que a instituição manterá a sua localização no Palácio da Ega e que a actual equipa não sofrerá alterações. Secretaria de Estado da Cultura confirma apenas que está "a trabalhar" no assunto.

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O Arquivo Histórico Ultramarino mantém-se no Palácio da Ega Malte Jaeger

O Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), que tem a seu cargo cerca de 16 quilómetros da mais relevante documentação sobre a relação de Portugal com as suas ex-colónias, vai ser “integrado no Arquivo Nacional Torre do Tombo”, adiantou hoje ao PÚBLICO o Gabinete do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação. A decisão, tomada “após várias consultas sobre este assunto”, salvaguarda a autonomia da instituição, que continuará sediada no Palácio da Ega, em Lisboa, e manterá a sua “equipa de dirigentes e de funcionários”.

A confirmar-se esta integração, o  AHU passará a a integrar a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), ficando sob a tutela da Secretaria de Estado da Cultura (SEC). Contactado pelo PÚBLICO, o Gabinete de Jorge Barreto Xavier adiantou apenas que a SEC "tem estado a trabalhar com o Ministério dos Negócios Estrangeiros para se encontrar uma solução, que será anunciada brevemente".

Ana Canas, a actual directora do AHU, diz que este cenário “não constitui uma surpresa” – era uma das hipóteses em cima da mesa na sequência da restruturação do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT), de que o arquivo que dirige depende –, preferindo não fazer nenhum comentário adicional nesta fase em que o processo ainda está em curso. 

O Gabinete do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação tem um acordo de princípio com a Universidade de Lisboa para o acolhimento do IICT, mas esse acordo não incluirá a migração do AHU para aquela instituição do ensino superior público, dada a especificidade das suas missões de conservação. Numa carta aberta divulgada na sexta-feira, mais de cem investigadores e professores universitários de 11 países contestavam essa possibilidade, recordando que os chamados “arquivos coloniais” estão “sob a guarda directa do Estado” em todos os países da Europa.

Mas a integração do AHU na Torre do Tombo, sendo “indiscutivelmente” a decisão “adequada” com que “todos estarão de acordo”, não resolve “os gravíssimos problemas” com que actualmente se debate a instituição, sublinha ao PÚBLICO Diogo Ramada Curto, investigador do Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa e um dos signatários da carta aberta. “O AHU está completamente descapitalizado e foi tratado durante todos estes anos como uma instituição de segunda categoria. Esta alteração tem de ser acompanhada da dotação orçamental necessária para inverter a vergonhosa menorização do arquivo. A situação em que o AHU se encontra actualmente – de falta de meios, de falta de conservadores, de falta de instrumentos de catalogação, de falta de tudo – compromete a preservação da memória histórica no que diz respeito à relação de Portugal com as antigas colónias”, diz o historiador, que tem trabalhado justamente os temas do colonialismo e do imperialismo. A anunciada passagem do AHU para a tutela da SEC pode agravar esse subfinanciamento, acrescenta: “Sabemos perfeitamente que a SEC é a última a sentar-se à mesa do orçamento de Estado.”

Cláudia Castelo, que também subscreveu a carta aberta, partilha esta preocupação, sublinhando que "o Governo tem de garantir condições financeiras e de recursos humanos para que o AHU possa cumprir eficazmente as suas funções" – funções que, frisa, são de alcance internacional, dada a diversidade de territórios cuja história também é contada pelos documentos ali depositados. "A concretizar-se, é seguramente a decisão acertada. A Torre do Tombo é a tutela mais adequada, a tutela natural para o AHU, que assim irá finalmente para o sítio onde sempre deveria ter estado desde a extinção do Ministério do Ultramar", defende a investigadora da Universidade de Lisboa.

A integração na DGLAB, afirma ainda Cláudia Castelo, pode permitir a resolução de debilidades estruturais do AHU, como o atraso no inventário, e agilizar a descrição da documentação numa plataforma adequada e disponível on-line, que facilite o acesso a quem queira consultar o espólio a partir de Angola ou de Moçambique: "Actualmente, só um investigador que consiga deslocar-se a Portugal pode consultar o arquivo. Muitas vezes tem poucas semanas para trabalhar e a pesquisa acaba por não ser frutuosa, até porque à distância não tem actualmente forma de saber com o que pode contar."

A investigadora reitera o cenário de desinvestimento descrito por Diogo Ramada Curto, que considera lamentável "numa instituição cuja missão projecta o país lá fora e pode ter imenso retorno, até diplomático". No mesmo sentido, os subscritores da carta aberta alertavam a tutela para o interesse directo que a documentação em causa, "dada a sua abrangência", tem para os "países de língua oficial portuguesa", e para a sua particular relevância no quadro do "conhecimento de todo o processo de expansão europeia": "O AHU é um pólo de atracção da comunidade de pesquisadores de todo o mundo, e altamente potenciador da internacionalização da produção científica portuguesa em ciências sociais e humanidades".

Um arquivo vivo

A dissociação agora prevista do AHU e do IICT não deverá, entretanto, quebrar a lógica de complementaridade entre as duas instituições. Silvestre Lacerda, que é o responsável pela área dos arquivos da DGLAB e integra a unidade de acompanhamento da restruturação do IICT, diz que o que tem estado em cima da mesa é uma “aproximação aos arquivos nacionais”: “Nada sai do Palácio da Ega, mantendo-se o AHU como unidade autónoma, sem perder a sua ligação às colecções científicas do IICT.”

O MNE quer garantir que o acesso dos investigadores do IICT ao arquivo continuará a processar-se nos termos em que tem funcionado.

Ex-investigadora do IICT até muito recentemente, Cláudia Castelo não vê razão para que seja concedida aos investigadores daquela unidade uma via verde para a consulta da documentação do AHU. "Todos os investigadores – quem quer que eles sejam, onde quer que eles estejam – devem ter igualdade de acesso aos arquivos nacionais. Não vejo desvantagem nenhuma na separação entre o AHU e o IICT porque nunca vi vantagem nenhuma na sua associação: o AHU já era um corpo estranho na Junta de Investigações Científicas do Ultramar, que deu lugar ao actual instituto", sublinha. E lembra que é preciso acautelar a incorporação no AHU de documentação histórica do organismo que lhe antecedeu e que ainda está junto do arquivo corrente do IICT, indisponível para consulta.

Embora o seu acervo esteja por natureza circunscrito, o AHU é um arquivo vivo. Ainda recentemente, conta Cláudia Castelo ao PÚBLICO, ali foi incorporada documentação relativa a Angola e Moçambique que estava depositada no Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento.

O AHU – originalmente Arquivo Histórico Colonial – foi criado pelo decreto 19868 de 9 de Junho de 1931 com a missão e “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessam ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, económica e financeira da colonização”, até então dispersos pelos vários continentes da presença portuguesa.

Com Isabel Salema

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