Amar é um verbo a usar

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É um espectáculo para este tempo de ruínas, em que a pele de André Braga e Ainhoa Vidal se expõe até às cicatrizes mais intrasmissíveis. Paus e Pétalas, a nova criação da Circolando, estreia-se esta noite no Mosteiro de São Bento da Vitória

Basta abrir o portão para ver que ao lado a ruína decresce. É uma ruína cada dia mais ruína, o esqueleto cada dia mais esqueleto de uma fábrica impedida de descansar em paz no coração do lugar onde o Porto foi um dia industrial e agora é persistentemente pobre e mal amado: eixo Campanhã-Freixo, ali de onde se vê o rio a fazer uma das suas últimas curvas antes de morrer na praia (e isto ao som dos comboios que partem).

Nos últimos meses, enquanto abriam e fechavam o portão do armazém onde têm a sua sala de ensaios na Central Eléctrica do Freixo, André Braga e Cláudia Figueiredo — o núcleo duro da Circolando — viram a ruína a decrescer. “Todos os dias há pessoas que vêm para aqui apanhar ferro, para depois o venderem. Ouvimo-los a aproximarem-se quando estamos a trabalhar. Desempregados, imigrantes, sem-abrigo... São cada vez mais”, conta Cláudia ao Ípsilon. Paus e Pétalas, a nova criação da companhia que esta noite se estreia no Mosteiro de São Bento na Vitória, Porto (até dia 30), fez-se em cima dessa ruína e tem memória de todas as terminais idas e vindas que lhe foram (continuarão a ser) vizinhas. Mas antes de a ruína se tornar visível a olho nu, impondo-se como uma inevitabilidade, já estava na cabeça da Circolando: “Queríamos falar do amor, de um casal num tempo de ruínas e num espaço de ruínas. Ruínas metafóricas, mas também físicas: é um espectáculo com muitas pedras caídas pelo chão... Pedras, entulho, restos. E ao mesmo tempo é um espectáculo sobre esta sensação de que está tudo a ruir no país e nem é preciso andar muito: está a ruir aqui mesmo ao lado”, continua Cláudia. Já era essa a sensação há dois anos, quando André Braga ficou sozinho em palco (mas não totalmente: havia a guitarra de Tó Trips) a lutar com a areia que dava título à peça: “Este espectáculo é como Portugal. Tem essa coisa de ir para a praia, de morrer na praia, que diz muito acerca do Sul da Europa. Não queria ?car só na poética do deserto: Areia também é o país a ruir. Há um lado na ruína que eu acho muito inspirador”, dizia então ao PÚBLICO.

É um caminho de pedras, portanto, aquele que André Braga e Ainhoa Vidal — o casal eventualmente em ruínas desta peça, que junta ao fundador da Circolando uma intérprete que já tinha feito parte da caravana da Circolando em Arraial e a outra metade dos Dead Combo, Pedro Gonçalves — percorrem em Paus e Pétalas. Mas também é um caminho familiar: não só porque em última instância é disso, da família como último refúgio quando tudo o resto desaba, que querem voltar a falar (a casa, aqui reduzida ao cimento mínimo de um colchão, é um dos temas recorrentes da companhia), mas também porque os dois decidiram trazer para este espectáculo de uma intimidade violentamente desarmante os filhos (um menino de três anos, no caso de André, uma menina de dez meses, no caso de Ainhoa) de cada um — que, já agora, para a família ficar completa, são também, respectivamente, filhos de Cláudia Figueiredo e de Pedro Gonçalves.

Foi uma aventura — ainda estava a ser uma aventura a uma semana da estreia, quando o Ípsilon assistiu a um ensaio. “Ainda estamos à procura da maneira de integrar o Luís, de conseguir que desbloqueie e fique inteiro ali. É questionável para mim, enquanto intérprete, a ambiguidade da presença dele, que é tão espontânea quanto encenada”, reflecte André. Para Ainhoa, que fez o seu primeiro dueto com a filha quando ela tinha seis meses e ainda só gatinhava, “ver uma pessoa em palco que não se preocupa com o facto de estar em palco é uma experiência fabulosa”. “No limite”, argumenta, “é o que o artista quer para si, que o palco seja realmente a sua casa — e isso demora anos ou décadas a conseguir-se.”

Como em casa

Também pode demorar anos ou décadas a conseguir-se, essa coisa do “amor como telepatia” a que André se refere quando descreve como Paus e Pétalas foi aparecendo nos ensaios. “É como se trouxéssemos as pessoas para a nossa casa. Sem que tivéssemos propriamente um guião. O amor acaba por estar mais numa respiração conjunta do que propriamente nas cenas, embora algumas sejam eventualmente figurativas”, diz.

Ao contrário de espectáculos anteriores da Circolando — e nomeadamente dos que integraram o ciclo Poética da Casa —, este praticamente dispensou a bagagem teórica. Não há filosofia aqui, só pele, exposta até às cicatrizes mais intransmissíveis (cesariana?), e uma frase (“Não posso cair mais baixo que o teu coração”) pronta a fazer chorar, seguida de uma canção idem (Love me tender). “Houve algumas leituras mais filosóficas — Octavio Paz, Ortega y Gasset —, mas depois começámos a sentir que o que mais nos estimulava eram textos poéticos, e ficaram excertos dispersos. Breton, Yourcenar, E. E. Cummings”, diz Cláudia. “Se calhar é mais desconfortável, mas também é bom correr o risco de uma criação mais desorganizada — sendo que pode ser angustiante, porque os tempos também estão muito desorganizados”, acrescenta André.

Paus e Pétalas é, nesse sentido, frágil como este tempo estranho, a ponto de poder partir-se, frágil como o amor, que ainda assim os três acreditam ser irredutível: “Claro que o amor não é impermeável e que a ruína exterior é contagiosa. Mas imaginamos que na Síria continuem a nascer crianças. Que as pessoas continuem a enamorar-se. O amor nunca morre.” 

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